São Paulo, sábado, 03 de julho de 2004

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FOTOGRAFIA

Artista português expõe 118 trabalhos feitos entre 1949 e 1952

Fernando Lemos sai da sombra sem rancor

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Ainda bem que o pintor, fotógrafo, designer gráfico e poeta Fernando Lemos, 78, não sofre dos males do rancor que acomete artistas caídos no esquecimento.
As 118 fotos que expõe a partir de hoje na Pinacoteca foram mostradas em 1953 em São Paulo e no Rio e caíram no buraco negro (na Europa, foram redescobertas em 1992 em Paris e já passaram por Lisboa, Madri e Hamburgo). Sem rancor fica mais fácil notar o enigma, a experimentação e a capacidade de assustar que as imagens preservam.
O primeiro susto é saber que só fotografou por quatro anos, entre 1949 e 1952, em Portugal, onde nasceu. "Não gosto de andar com essas tralhas nas costas", conta.
Àquela época, só havia por lá ou a fotografia social ou a lírica. Lemos inventou-se de modo diferente porque, até vir para o Brasil em 1952, integrava um grupo surrealista português. A sua fotografia pegou um atalho literário: absorveu técnicas da escrita automática do surrealismo, que tentava suspender o juízo para permitir que o inconsciente aflorasse, sobretudo na junção aparentemente díspar de imagens.
Paulo Herkenhoff, diretor do Museu Nacional de Belas Artes e ex-curador da Bienal Internacional de São Paulo, frisa o jogo proposto pelas fotos de Lemos no texto que escreveu para o catálogo da exposição: "A invenção de uma lógica de justaposições na fotografia de Lemos leva o olho a vaguear, já sem poder escapar da alteração, invenção, ampliação e superação dos jogos do código".
Quem vê as técnicas de montagem empregadas por Lemos pode pensar que ele conhecia bem Man Ray (1890-1976), que se tornou sinônimo do surrealismo fotográfico. Ledo engano. Encontrou-se uma única vez com ele, no ateliê parisiense da pintora Maria Helena Vieira da Silva (1908-1922).
Lemos diz que, "se tivesse que falar de influências", preferiria citar o pintor surrealista de origem alemã Max Ernst (1891-1976), o cinema expressionista alemão e, sobretudo, o francês Marcel Duchamp (1887-1968).
Para ele, a tela "Nu Descendo a Escada", de Duchamp, "explica tudo" o que buscava na fotografia: "Eu desmembrava o movimento não usando os movimentos de uma pessoa correndo, mas com o próprio movimento da fotografia, com a matéria da qual é feita a obra. Se não, você fotografa pôr-do-sol, o que não me interessa".
Suas imagens são construídas com uma técnica que parece vinda do desenho e da pintura, seus interesses iniciais, aos quais voltaria a se dedicar no Brasil, com os quais ganhou dois prêmios em Bienais. Ele isolava uma parte do negativo, fazia uma foto e depois adicionava uma segunda imagem sobre a parte que reservara.
De superposição, ele tem alergia pelo que tem de aleatório: "Acho uma baixaria. É só pôr um negativo em cima do outro", desdenha.
Do surrealismo, mais do que técnica, herdou um certo espírito de colocar o mundo real em suspensão. "As fotos têm um estranhamento do qual você diz: "Não sei se existe, mas está lá"", diz.
O escritor José Saramago, amigo de Lemos, foi por um caminho parecido ao tentar definir suas imagens numa conversa com ele há três anos: "Se tivesse de falar alguma coisa, falaria em aparição".
Essa idéia de aparição transpassa quase todos os retratos que Lemos fez dos amigos portugueses da época, como os pintores Arpad Szenes e Vieira da Silva, o poeta Alexandre O'Neil e o escritor Jorge de Sena. Essa plêiade de amigos, um prêmio na 5ª Bienal, uma sala especial de pinturas na 7ª e fotos elogiadas por Régis Durand, ex-diretor do Centro Internacional de Fotografia em Paris, não são garantia de quase nada para Lemos no Brasil. Ele atribui o esquecimento ao seu estrangeirismo -"sou estrangeiro aqui e em Portugal, de onde saí jovem".
Pesou também, acredita, o fato de não pertencer a grupos. Os concretos o estranhavam por circular sem culpa pelo figurativo e pelo abstrato nos anos 50, quando era sinal de atraso adotar o realismo. Ele tentou voltar para Portugal em 1974, quando comunistas e socialistas chegaram ao poder com a Revolução dos Cravos, mas não suportou a "terrinha". "São muito conservadores. O modo de ver deles é o mesmo de sempre."
Basta olhar as fotos para entender sua incompatibilidade com modos de ver que não mudam.


À SOMBRA DA LUZ - À LUZ DA SOMBRA. Onde: Pinacoteca (pça. da Luz, 2, tel. 0/xx/11/229-9844). Quando: de hoje a 22/8; ter./dom., das 10h às 18h. Quanto: R$ 4 (grátis aos sábados).


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