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TELEVISÃO
"Senhora do Destino", novela das oito da Globo, usa fatos do passado para promover conciliação e apagar diferenças
Mas, afinal, para que serve a história?
SHEILA SCHVARZMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em geral, na vida dos povos,
países ou indivíduos, a história se liga, explica ou permite
compreender o presente. Ao contrário disso, nos primeiros capítulos de "Senhora do Destino" a história parece, num primeiro olhar,
um chamariz mercadológico. Ou
será que, seduzidos pelo carisma
das imagens, não nos demos conta de que a história encenada foi
enterrada ao cabo de meros dois
dias junto com a gloriosa d. Josefa-Niomar Muniz Sodré e o seu
saudoso "Correio da Manhã"?
Depois de dois dias de intenso
festival de reconstituições históricas, partilhando das agruras dos
idos de 68, mesclados à festa no
Itamarati com as colunáveis do
Ibrahim Sued e personagens do
governo militar, nada disso encontra continuidade ou reverberação no presente da trama. Ao
contrário, somos levados a entender que a história é uma coisa, a
vida real é outra, e uma não interfere na outra. A história é coisa do
passado, e o passado não conversa, em absoluto, com o presente.
O arbítrio de 68, as aparições do
presidente Costa e Silva, Paulo
Francis ou o fechamento do "Correio" foram tirados do esquecimento. Mas o que fez a ficção com
isso? Nada. São aparições ilustrativas. Talvez tenham uma virtude
pedagógica. Mas qual? São, antes
de mais nada, signos da luta pela
liberdade, que o "Correio" naquele momento encarnava.
O fato é que, na novela, a principal decorrência do fechamento
do regime que se instalara em
1964 é que Maria do Carmo perde
sua filha. Ou seja, a história é só
um cenário interessante, cujos
acontecimentos, no mais, servem
para atrapalhar a vida dos protagonistas. A história é um espetáculo, um desafio à reconstituição,
mas, afinal, para o que ela serve?
Capítulos iniciais costumam
trazer extravagâncias: altos investimentos, gravações no exterior
em lugares exóticos ou carismáticos. Desta feita, o espetáculo foi
transferido para o passado. Um
momento doloroso, traumático.
Então por que hoje tirar do grande acervo de caracterizações a história do "Correio", por tantos
anos enterrada numa emissora
que começou sua ascensão, justamente, nesse mesmo momento e
ainda hoje é vista como beneficiária do regime que se solidificava?
Após o mergulho na mitologia
das elites paulistas -com "Um
Só Coração" do modernismo ao
Quarto Centenário, ilustrando
com respeitosa reverência uma
história entronizada-, a Globo
arrisca com "Senhora do Destino" um novo passeio histórico.
Os personagens esquecidos de
1968 animam-se, o cenário é
montado. E é assim que valem:
como fundo espetacular para
uma ação futura, em que nem sequer servirão como explicação,
prenúncio ou causa. Com isso,
podem conviver em Sebastião, o
motorista, a cumplicidade com
Josefa-Niomar, digna representante da elite liberal, e o compadrio com o populista Tenório Cavalcanti, último dos personagens
históricos reanimados pela ficção.
A questão que fica, então, é saber por que foi esse o momento
histórico escolhido para sair do
esquecimento, dentre tantos outros. E por que centrar a ação na
história de um jornal que é fechado por sustentar idéias que contrariavam um regime que se impunha e do qual a televisão, e sobretudo a Globo, foi aliada?
Certamente porque é em episódios assim que a história é reescrita. Reescrita para apagar as diferenças, fazer esquecer os antigos
engajamentos, de forma a que hoje, indistintamente, todos os que
não se identificam com aqueles
medonhos policiais e militares sejam assimilados ao dito "campo
democrático". Indistintamente.
Promovendo a conciliação que
apaga a história, suas especificidades e diferenças, a novela procura entronizar a Globo não só
como senhora do destino (que já
é), mas como senhora da história.
Sheila Schvarzman é doutora em história pela Unicamp, historiadora do Condephaat e autora de "Humberto Mauro e
as Imagens do Brasil" (Edunesp, 2004)
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