São Paulo, sábado, 03 de julho de 2004

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TELEVISÃO

"Senhora do Destino", novela das oito da Globo, usa fatos do passado para promover conciliação e apagar diferenças

Mas, afinal, para que serve a história?

SHEILA SCHVARZMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em geral, na vida dos povos, países ou indivíduos, a história se liga, explica ou permite compreender o presente. Ao contrário disso, nos primeiros capítulos de "Senhora do Destino" a história parece, num primeiro olhar, um chamariz mercadológico. Ou será que, seduzidos pelo carisma das imagens, não nos demos conta de que a história encenada foi enterrada ao cabo de meros dois dias junto com a gloriosa d. Josefa-Niomar Muniz Sodré e o seu saudoso "Correio da Manhã"?
Depois de dois dias de intenso festival de reconstituições históricas, partilhando das agruras dos idos de 68, mesclados à festa no Itamarati com as colunáveis do Ibrahim Sued e personagens do governo militar, nada disso encontra continuidade ou reverberação no presente da trama. Ao contrário, somos levados a entender que a história é uma coisa, a vida real é outra, e uma não interfere na outra. A história é coisa do passado, e o passado não conversa, em absoluto, com o presente.
O arbítrio de 68, as aparições do presidente Costa e Silva, Paulo Francis ou o fechamento do "Correio" foram tirados do esquecimento. Mas o que fez a ficção com isso? Nada. São aparições ilustrativas. Talvez tenham uma virtude pedagógica. Mas qual? São, antes de mais nada, signos da luta pela liberdade, que o "Correio" naquele momento encarnava.
O fato é que, na novela, a principal decorrência do fechamento do regime que se instalara em 1964 é que Maria do Carmo perde sua filha. Ou seja, a história é só um cenário interessante, cujos acontecimentos, no mais, servem para atrapalhar a vida dos protagonistas. A história é um espetáculo, um desafio à reconstituição, mas, afinal, para o que ela serve?
Capítulos iniciais costumam trazer extravagâncias: altos investimentos, gravações no exterior em lugares exóticos ou carismáticos. Desta feita, o espetáculo foi transferido para o passado. Um momento doloroso, traumático. Então por que hoje tirar do grande acervo de caracterizações a história do "Correio", por tantos anos enterrada numa emissora que começou sua ascensão, justamente, nesse mesmo momento e ainda hoje é vista como beneficiária do regime que se solidificava?
Após o mergulho na mitologia das elites paulistas -com "Um Só Coração" do modernismo ao Quarto Centenário, ilustrando com respeitosa reverência uma história entronizada-, a Globo arrisca com "Senhora do Destino" um novo passeio histórico.
Os personagens esquecidos de 1968 animam-se, o cenário é montado. E é assim que valem: como fundo espetacular para uma ação futura, em que nem sequer servirão como explicação, prenúncio ou causa. Com isso, podem conviver em Sebastião, o motorista, a cumplicidade com Josefa-Niomar, digna representante da elite liberal, e o compadrio com o populista Tenório Cavalcanti, último dos personagens históricos reanimados pela ficção.
A questão que fica, então, é saber por que foi esse o momento histórico escolhido para sair do esquecimento, dentre tantos outros. E por que centrar a ação na história de um jornal que é fechado por sustentar idéias que contrariavam um regime que se impunha e do qual a televisão, e sobretudo a Globo, foi aliada?
Certamente porque é em episódios assim que a história é reescrita. Reescrita para apagar as diferenças, fazer esquecer os antigos engajamentos, de forma a que hoje, indistintamente, todos os que não se identificam com aqueles medonhos policiais e militares sejam assimilados ao dito "campo democrático". Indistintamente. Promovendo a conciliação que apaga a história, suas especificidades e diferenças, a novela procura entronizar a Globo não só como senhora do destino (que já é), mas como senhora da história.


Sheila Schvarzman é doutora em história pela Unicamp, historiadora do Condephaat e autora de "Humberto Mauro e as Imagens do Brasil" (Edunesp, 2004)


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