São Paulo, sábado, 03 de julho de 2004

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MARLON BRANDO

Um ator chamado desejo

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

No começo ele era explosivo, belo, sensual, o olhar detinha-se fixo no interlocutor, e só isso era capaz de intimidar. No fim, era um homem gordo, rotundo mesmo, o olhar tornara-se baço, como se a vida tivesse se encarregado de varrer as certezas da juventude.
Mas, quando se movia, era o mesmo Marlon Brando. Incrível: parecia uma bola com pernas, nos últimos anos, mas, se por acaso resolvia dançar, a graça, a elegância e mesmo o charme manifestavam-se por inteiro.
Estranho Marlon Brando. Era como se soubesse que seu talento não era apenas grande. Era um pouco demais. No seu segundo filme, "Uma Rua Chamada Pecado", já fazia Kowalski, o demônio polaco criado por Tennessee Williams. Ou melhor, retomava o Kowalski que fizera no palco com Elia Kazan.
Nascia para o cinema uma dupla famosa: Brando/Kazan. Como Sternberg/Dietrich, como Bogart/Bacall, como Eisenstein/Tissé, como Godard/Anna Karina. Kazan, o fundador do Actors" Studio e protegido da Fox. Brando, o aluno do Actors". Voltariam a se encontrar: em "Viva Zapata!", em "Sindicato de Ladrões".
Depois disso não filmaram mais juntos. Por quê? Marlon não queria mais se sujar sendo dirigido pelo dedo-duro que entregou os ex-amigos de Partido Comunista à caça às bruxas. Mas, sobretudo, Marlon Brando não queria mais ser dirigido, ponto.
De 1954 em diante, talvez até "O Poderoso Chefão", com uma exceção aqui, outra ali, Marlon Brando faz ele mesmo, ou seja, o papel que criou para si mesmo: o rebelde, o desajustado, o desiludido. As exceções: quando trabalha para Chaplin, em "A Condessa de Hong Kong", ou para si próprio, em "A Face Oculta".
Mesmo nos anos 60, quando encontra jovens e talentosos diretores, como Arthur Penn ("Caçada Humana") ou o italiano Gillo Pontecorvo ("Queimada"), Brando faz o papel de Brando. Como se considerasse seu talento grande demais para o cinema, contentava-se em ser simplesmente ele próprio. Inútil dizer: quase sempre era o que bastava. Porque certas figuras são assim: botam o rosto em cena, a câmera faz o resto.
Marilyn não era a mesma coisa? Dizem que ela podia ficar horas sentada que ninguém nem notava sua presença. Mas, quando a câmera ligava, era o que era.
A fama de difícil difundiu-se tanto que, quando quis fazer Don Corleone, de "O Poderoso Chefão", a Paramount obrigou-o a submeter-se a um teste. Ele topou, passou e fez um dos personagens mais marcantes do cinema no século 20.
Logo depois, "O Último Tango em Paris", de Bernardo Bertolucci, volta a reafirmá-lo como galã. Mais do que isso: é o velho rebelde que volta à cena, agora maduro, com um ar de desencanto no rosto, numa Paris pós-Maio de 68. Estava soberbo.
Mas parece que Marlon gostava de num filme só ou dois mostrar do que era capaz e depois divertir-se fazendo o papel de si mesmo em filmes menores. Isso é o que fará ao longo dos anos 80, depois de atormentar Coppola na filmagem de "Apocalypse Now" (uns poucos minutos em que o diretor lutou bravamente na tentativa de dirigi-lo): papéis cada vez menores, mais raros e mais bem pagos.
O público não se importava e ia ao cinema só para vê-lo, por uns poucos minutos, num papel que só importava por causa do intérprete. No final da vida, nem isso.
Sabíamos de Brando pelas páginas de desgraças: o filho matou o namorado da filha. A filha suicidou-se. Brando, retirado. Brando derrotado pelos anos 90, pelo conservadorismo, pelo fanatismo religioso: era sobre sua cabeça que caíam as contradições da América que ele representara melhor do que ninguém. Brando não foi só um ator, nem um ícone de seu tempo. Foi de uma só tacada um formidável monumento do cinema e a perfeita expressão do destino tortuoso dessa arte corrompida por seus milhões de dólares.


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