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MARLON BRANDO
Um ator chamado desejo
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
No começo ele era explosivo,
belo, sensual, o olhar detinha-se fixo no interlocutor, e só
isso era capaz de intimidar. No
fim, era um homem gordo, rotundo mesmo, o olhar tornara-se baço, como se a vida tivesse se encarregado de varrer as certezas da
juventude.
Mas, quando se movia, era o
mesmo Marlon Brando. Incrível:
parecia uma bola com pernas, nos
últimos anos, mas, se por acaso
resolvia dançar, a graça, a elegância e mesmo o charme manifestavam-se por inteiro.
Estranho Marlon Brando. Era
como se soubesse que seu talento
não era apenas grande. Era um
pouco demais. No seu segundo
filme, "Uma Rua Chamada Pecado", já fazia Kowalski, o demônio
polaco criado por Tennessee Williams. Ou melhor, retomava o
Kowalski que fizera no palco com
Elia Kazan.
Nascia para o cinema uma dupla famosa: Brando/Kazan. Como
Sternberg/Dietrich, como Bogart/Bacall, como Eisenstein/Tissé, como Godard/Anna Karina.
Kazan, o fundador do Actors" Studio e protegido da Fox. Brando, o
aluno do Actors". Voltariam a se
encontrar: em "Viva Zapata!", em
"Sindicato de Ladrões".
Depois disso não filmaram mais
juntos. Por quê? Marlon não queria mais se sujar sendo dirigido
pelo dedo-duro que entregou os
ex-amigos de Partido Comunista
à caça às bruxas. Mas, sobretudo,
Marlon Brando não queria mais
ser dirigido, ponto.
De 1954 em diante, talvez até "O
Poderoso Chefão", com uma exceção aqui, outra ali, Marlon
Brando faz ele mesmo, ou seja, o
papel que criou para si mesmo: o
rebelde, o desajustado, o desiludido. As exceções: quando trabalha
para Chaplin, em "A Condessa de
Hong Kong", ou para si próprio,
em "A Face Oculta".
Mesmo nos anos 60, quando
encontra jovens e talentosos diretores, como Arthur Penn ("Caçada Humana") ou o italiano Gillo
Pontecorvo ("Queimada"), Brando faz o papel de Brando. Como
se considerasse seu talento grande
demais para o cinema, contentava-se em ser simplesmente ele
próprio. Inútil dizer: quase sempre era o que bastava. Porque certas figuras são assim: botam o rosto em cena, a câmera faz o resto.
Marilyn não era a mesma coisa?
Dizem que ela podia ficar horas
sentada que ninguém nem notava
sua presença. Mas, quando a câmera ligava, era o que era.
A fama de difícil difundiu-se
tanto que, quando quis fazer Don
Corleone, de "O Poderoso Chefão", a Paramount obrigou-o a
submeter-se a um teste. Ele topou, passou e fez um dos personagens mais marcantes do cinema no século 20.
Logo depois, "O Último Tango
em Paris", de Bernardo Bertolucci, volta a reafirmá-lo como galã.
Mais do que isso: é o velho rebelde
que volta à cena, agora maduro,
com um ar de desencanto no rosto, numa Paris pós-Maio de 68.
Estava soberbo.
Mas parece que Marlon gostava
de num filme só ou dois mostrar
do que era capaz e depois divertir-se fazendo o papel de si mesmo
em filmes menores. Isso é o que
fará ao longo dos anos 80, depois
de atormentar Coppola na filmagem de "Apocalypse Now" (uns
poucos minutos em que o diretor
lutou bravamente na tentativa de
dirigi-lo): papéis cada vez menores, mais raros e mais bem pagos.
O público não se importava e ia
ao cinema só para vê-lo, por uns
poucos minutos, num papel que
só importava por causa do intérprete. No final da vida, nem isso.
Sabíamos de Brando pelas páginas de desgraças: o filho matou o
namorado da filha. A filha suicidou-se. Brando, retirado. Brando
derrotado pelos anos 90, pelo
conservadorismo, pelo fanatismo
religioso: era sobre sua cabeça que
caíam as contradições da América
que ele representara melhor do
que ninguém. Brando não foi só
um ator, nem um ícone de seu
tempo. Foi de uma só tacada um
formidável monumento do cinema e a perfeita expressão do destino tortuoso dessa arte corrompida por seus milhões de dólares.
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