São Paulo, quinta-feira, 03 de julho de 2008

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Comida

Palco & fogão

JANAINA FIDALGO
LUCAS NEVES
DA REPORTAGEM LOCAL

Vera é uma chef cinqüentona e meio implicante. Recusa-se a servir filé bem passado (ou "carne esturricada", como ela pragueja), implica com os vegetarianos ("gosto de gente que vem aqui para comer; eles vêm se alimentar") e vive em pé de guerra com o filho, que abandonou o cinema para ganhar dinheiro como publicitário. Andrea é uma chef trintona, mãe de dois, ainda não tão intransigente, que deu ares modernos aos clássicos judaicos em um restaurante no bairro paulistano de Higienópolis.
A convite da Folha, elas se encontraram duas vezes nos últimos dias. Por cerca de duas horas, Andrea Kaufmann encarnou Vera, personagem da peça "A Reserva", que estréia neste sábado, em São Paulo.
Depois, foi a vez de a titular do papel, Irene Ravache, arriscar-se, em plena hora do almoço, na cozinha do restaurante AK Delicatessen, de Andrea.
Atriz amadora na época da faculdade, a chef foi desafiada a improvisar uma cena curta depois de ler o texto. Antes de atuar, quis saber mais sobre Vera para "compor" a personagem. "Ela não tem muito jogo de cintura", explica Irene. "O restaurante dela vai bem?", questiona Andrea. "Esta é que é a pergunta. Até um determinado momento", conta a atriz.
A conversa vai virando e toma o rumo da cozinha. Irene aponta seus pratos preferidos no cardápio do AK, fala do neto indiferente a seu brigadeiro.
Quando Andrea comenta a inapetência do filho, a diretora da peça, Regina Galdino, interrompe a prosa e traz o foco de volta ao palco: "Então... Eu vou explicar o que é a cena. Grande momento, hein?".

Sem papelzinho
Da primeira fileira, Irene acompanha a leitura do texto. "Ela está melhor do que eu. A Regina é completamente louca. Fica exigindo muito dela!"
Texto lido, é hora de ensaiar as marcações de cena. "Regina, você acha que ela está entendendo tudo o que você tá pedindo?", provoca Irene.
Não só entende como ainda dispensa a cola. "Ó, eu tô indo sem papelzinho...", gaba-se Andrea, da coxia. "Nooossa! Qualquer coisa eu sopro para você", apoia Irene. "Andrea, merda!", incentiva a diretora.
Começa a cena, e a atriz por um dia insere um "caco" aqui, faz uma adaptação acolá e arranca risos da "platéia". O mix de castanhas e frutas secas de um dos diálogos logo ganha um aposto: "Uma delícia, vai te deixar nutrido o vôo inteiro", improvisa a Vera de ocasião, dirigindo-se ao "filho", o ator Evandro Soldatelli -sete anos mais velho do que ela.
Num trecho mais adiante, a nora do ramo gastronômico vira "do "métier'", em ajuste aprovado pela Vera titular. "Acho que vou adotar o "métier", adorei", diverte-se Irene.
Com a boca ainda seca "de nervoso", a chef descobre que a diretora lhe reservou um segundo desafio: uma cena maior e mais dramática. "Ai, Regina!", compadece-se Irene. "Lógico, Irene. Depois ela vai lá e te dá uma comida supercomplicada e vai parecer que teatro é fácil", justifica a diretora.
Andrea lê os diálogos, mas a carga emocional não satisfaz a diretora: "Pode ficar mais brava com ele [o filho], viu?". Imediatamente ela atende. Aumenta o volume da voz, muda a entonação e enfia um xingamento não previsto no texto: "Zeca, não tô te pedindo nada, seu folgado!".
A estréia fictícia acaba, e Andrea neste momento parece se sentir mais à vontade no palco: "Agora eu não saio mais também", brinca. Mas faz uma dura autocrítica: "No começo, deu aquela agonia. Eu estava nervosa. É difícil passar credibilidade. Eu ficava rindo. Não tenho esta veia dramática. Faltou entrar mais na personagem".
Irene discorda: "Ela chegou aqui, pegou o texto e fez. O que vocês estão pensando? Tem muito profissional que vacila".

Chef Irene
Quatro dias depois, na cozinha do AK Delicatessen, Irene chega para a revanche. Brincos, anéis e relógio ficam do lado de fora, mas o escarpin garante a elegância à frente do fogão.
Sem a figura da diretora, o algoz agora é a reportagem, que dá à atriz a tarefa de preparar uma receita, do início ao fim.
Andrea sugere um creme de lentilhas rosas com saladinha de pepino e coalhada, novidade do cardápio de inverno da casa.
Andrea dá indícios de que vai facilitar, assumindo parte do preparo do prato. "Advertida", conforma-se e passa às instruções: "Irene, vamos começar como se começa toda receita. Cortando uma cebolinha...".
Após a demonstração da técnica profissional do corte, mais complexa do que a caseira, Irene, talvez temerosa, pergunta: "Vocês nunca usam trituradores?". Parece um presságio.
Pouco depois, ela se machuca. "Ó, o primeiro corte do dedo!"
"Pega lá uma camisinha de dedo", pede Andrea a um funcionário, sem assombro. "Não tô encostando [o dedo ferido] na comida, não, viu, gente?"
Band-aid na mão, a atriz tempera o caldo em que a lentilha será cozida. Já é mais de meio-dia, e os pedidos começam a chegar. As atenções da chef agora dividem-se entre a clientela e a visitante. "Ela deve estar dizendo: onde é que eu me meti!", cochicha Irene, de olho "naquele pãozinho" do couvert.
Creme e acompanhamento prontos, Andrea orienta a montagem e a finalização. "Tô orgulhosa, tá bem gostoso", experimenta Irene.
"Atrapalhamos muito? Tá marchando? Marcha e sai?", pergunta, já inteirada do termo usado pelos chefs para cantar à equipe da cozinha os pedidos vindos do salão.
E aí, Andrea, como se saiu a chef por um dia? "Ela é bem aplicada e tem uma boa mão. Só usou pouco sal." A atriz brinca: "É que cozinho para gente velha, com pressão alta".
Antes de se despedir, avisa aos amigos de cozinha: "Ó, então amanhã, eu tô aqui, hein?".


A RESERVA
Quando:
estréia neste sábado; sex., às 21h30; sáb., às 21h; dom., às 18h; até 31/8
Onde: teatro Cosipa Cultura (av. do Café, 277, Jabaquara, tel. 0/xx/11/5070-7018); classificação 12 anos
Quanto: R$ 40 (sex.) e R$ 50 (sáb. e dom.)


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