São Paulo, sexta, 3 de julho de 1998

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"O Acordo" glamouriza vida, desespero e morte

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Quem, por acaso, bater com os olhos na sinopse de "O Acordo" pode ser induzido ao erro e achar que esse filme é uma ode à vida.
Um voyeur desajeitado, com tendências aparentemente suicidas, e um doente terminal fazem um acordo: o último se compromete a matar o primeiro se este, antes, financiar os seus últimos desejos, por mais desvairados que sejam.
Não é preciso ser muito esperto -nem ter lido muitas sinopses de filmes americanos recentes- para saber que esse tipo de história já tem o desenlace embutido no início: antes de morrer, o doente terminal levará o aparente suicida a redescobrir o amor pela vida.
A moral de "O Acordo" seria mais ou menos esse elogio da vida, se não fosse pela forma como vem embrulhada.
Em primeiro lugar, a vida nesse filme não é bem a que conhecemos e vivemos, mas uma estilização (inclusive da doença e da violência) numa fotografia granulada ao ritmo da última parada de sucessos da música pop.
Nessa estilização, a morte acaba ficando reduzida a algo um tanto nebuloso, mas que poderia ser alçado à passarela de um desfile ou às páginas publicitárias de uma revista de moda, e a vida se transforma em algo como uma espécie de férias glamourosas à espera da morte.
Não é por acaso que, nos créditos finais, quando se revela qual ator interpretou qual personagem, o espectador descobre, numa tirada engraçadinha, que as cinzas do doente terminal, cremado, foram feitas de "pêssegos".
O que se faz aqui é a glamourização do desespero e da morte, a ponto de não sobrar muito do sentimento nem de um nem de outro. Não é da morte real que parece tratar esse filme, mas de um outro tipo de morte, moderninha.
O que acontece em "O Acordo" é uma contradição entre forma e conteúdo (a morte como modinha) que torna tudo, dos sentimentos às aflições dos personagens, um tanto irreal, superficial e pasteurizado. É como se, a cada gesto, os jovens personagens, mesmo quando no leito de morte, tivessem a consciência de estarem sendo fotografados para alguma campanha de publicidade sobre um novo estilo de vida.
O germe desse maneirismo -que pode até ter marcado como originalidade autoral outros filmes do que se convencionou chamar recentemente de "cinema independente americano"- se tornou aqui escola da falsidade.
"O Acordo" é o tipo de filme que faz o espectador sonhar com um mundo (e um cinema) um pouco mais verdadeiro, por mais ingênua que essa nostalgia possa parecer nesse contexto.

Filme: O Acordo Produção: EUA, 1997 Direção: Finn Taylor Com: David Arquette, Brad Hunt, Cathy Moriarty
Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco de Cinema - sala 4, Estação Lumière 1 e Interlar Aricanduva 10


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