São Paulo, sexta, 3 de julho de 1998

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RECEITAS DO MELLÃO
Deêm cabeça de peixe para o soçaite

HAMILTON MELLÃO JUNIOR
Colunista da Folha

Noite dessas, saí para jantar com a minha companheira mais constante, a Solidão. E foi ela quem sugeriu aquele restaurante português muito bom, que todos vocês conhecem, lá nos Jardins.
Acolhidos fraternalmente entre ôlas e ôbas, fomos contagiados pela ânima lisboeta e, nostálgicos, pedimos cabeça de peixe em seu caldo, iguaria que comemos tantas vezes e tão irremediavelmente sós, às margens do Tejo. O luso garçom, cúmplice, piscou para nós aprovando o pedido apesar deste não constar da ementa.
Chegado à mesa o pantagruélico repasto (portentosa cabeça de namorado) começamos a salivar enquanto destrinchávamos a bochecha do peixe, que ainda demonstrava a altivez de um perdedor.
Foi então que percebemos, no salão, um silêncio tumular. De repente, os comensais pegaram seus celulares e começaram a se comunicar com as outras mesas, inicialmente entre cochichos e, depois, falando mais alto e rindo até às lágrimas, sem pudor de exibir suas alvas pontes e áureas incrustações. As mulheres, estas, chacoalhavam as jóias e reviravam os olhos como participantes de um estranho ritual pagão.
Mas do que riam tanto aqueles paulistas? Eu, parvo como sempre, demorei a notar que riam de nós e da nossa "pobre" cabeça de peixe. Aos poucos, minha tez saiu do rosa chegando até a magenta e vi o salão como um disco de Newton, girando com todas as cores e se transformando no branco geral.
Saímos entre apupos, sem pagar, obsequiados pelos garçons empenhados em amenizar o mistifório ou, quem sabe, feridos pelo desprezo explícito ao pátrio prato.
Fora do restaurante, caímos no primeiro boteco sórdido que encontramos e, confesso, exageramos nas doses buscando entender o porquê das pessoas pedirem sempre os previsíveis filés de linguado, salmão, truta e pescada, resistindo à toda e qualquer ousadia. Mas, afinal, nos consolamos. Um país que tem como pensador o Gabriel vai demorar muito para ter cultura.
Deixei minha amiga em casa beijando-a levemente na face, porque, o que se há de fazer, sou um homem muito respeitoso.
Ao contrário do que pensa nosso "café soçaite", as cabeças de peixe fazem o deleite dos franceses há séculos, como mostra esta receita do livro "La Cuisine Bourgeoise", de 1780, agora numa livre adaptação.


Ingredientes: 1 cabeça de peixe de bom tamanho, 2 copos de vinho branco seco, 1 dente de alho, 1 bouquet garni, 2 cebolas pequenas inteiras, sal e pimenta a gosto
Modo de fazer: colocar todos os ingredientes numa panela tampada, cobrindo-os completamente com água. Deixar apurar durante 45 minutos em fogo baixo. Na hora de servir, colocar numa sopeira e regar com azeite de oliva





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