São Paulo, Sábado, 03 de Julho de 1999
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LIVROS LANÇAMENTOS
Dicionário (des)organiza século da rebeldia

HAROLDO CERAVOLO SEREZA
de Paris


Século da rebeldia ou século da autoridade? O dicionário da contestação no século 20, lançado na França pela Larousse, lista 500 verbetes, relacionados a transgressões comportamentais, violências políticas, movimentos sociais, manifestos artísticos e obras-primas que se opuseram ao estabelecido no período.
O livro não diz, mas, se a revolta está em todas as partes, é porque a autoridade, neste século, também chegou a todos os lugares.
Na Inglaterra, por exemplo, surgem as raves, festas que, a partir do final dos anos 80, procuram burlam a regra que obriga os clubes londrinos a fechar às 2h. Na mesma cidade, as ruas dos bairros considerados mais perigosos hoje são vigiadas por redes de câmeras de televisão.
"Le Siècle Rebelle - Dictionaire de la Contestation au 20e Siècle" (O Século Rebelde - Dicionário da Contestação no Século 20), coordenado pelo historiador Emmanuel de Waresquiel, traz 672 páginas organizadas em ordem alfabética.
Amor livre, biquíni, comunismo antibolchevique, dadá, Franz Kafka, fascismo revolucionário, guerrilha, raves, a lista é quase interminável.
Na opinião do autor, "desordem alfabética", uma vez que a própria organização desorganiza, misturando assuntos: anarco-sindicalismo, antropofagia, antiamericanismo, antiapartheid são assuntos que se seguem, sem que estejam diretamente relacionados entre si.
Um dos verbetes, dedicado ao Cabaret Voltaire, faz um bom painel do que foi a rebeldia no século. Em Zurique, em plena Primeira Guerra Mundial, um grupo de artistas -reunidos em torno do dramaturgo e poeta Hugo Ball- lança o dadá, marco da desconstrução da ordem artística no século. Ball era um ativista pacifista, e Zurique, na Suíça, país neutro, um encrave de paz na Europa.
Lá viveram James Joyce, escrevendo "Ulysses", Jorge Luis Borges, aprendendo francês, e Lênin, organizando seu partido, cada um deles preparando a sua própria rebelião, conta Judith Siony, a historiadora autora da verbete.
Numa atmosfera um pouco menos carregada, esses intelectuais foram capazes de romper com as regras que, literalmente, os cercavam.
Cada um deles, assim, recusou o mundo em que vivia, buscando uma utopia, seja artística, seja política.
Enquadraram-se, desse modo, nas condições para virar verbete do dicionário.
"Rebelde, do latim "rebellis': "quem recomeça a guerra", quem se recusa a obedecer, quem se revolta contra a autoridade", lembra Waresquiel.
"Sou contra os sistemas, o mais aceitável dos sistemas é não existir sistema algum", escreveu o romeno Tristan Tzara no "Manifesto Dadá", de 1918. Hoje, o dadá -ou dadaísmo-, ele próprio virou um método de produção artística -ou um sistema.
No século em que os intelectuais descobriram o poder de suas opiniões, os manifestos ganham um destaque especial.
O "Eu Acuso...!", de Émile Zola, em defesa do capitão judeu Richard Dreyfus, injustamente acusado de traição na França, tem seu tópico. Outros documentos importantes foram reunidos numa página ilustrada.
O primeiro destacado, publicado no jornal "L'Humanité" em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, assinado por Albert Einstein, Bertrand Russel e Stefan Zweig, defende uma "união fraternal de todos os povos".
Em 1971, 343 mulheres declaram, em texto publicado pela revista "Le Nouvel Observateur", ter praticado aborto, ainda proibido na França -entre elas, Simone de Beauvoir, Catherine Deneuve e Marguerite Duras. Em 1974, a prática era legalizada pelo país.
Na mesma linha, em 1976, 15.940 pessoas declaram já ter fumado maconha em diversas ocasiões, após um apelo publicado no jornal "Libération" (este também um item). A droga, no entanto, continua prescrita -e, como tal, tem um verbete só para ela.
Intelectuais como o italiano Antonio Gramsci e os franceses Michel Foucault e Gilles Delleuze também têm seus verbetes próprios. Há, claro, os óbvios: Ernesto Che Guevara, Mao Tsé-tung e Nelson Mandela.
Mas talvez ainda mais significativa seja a ausência de Fidel Castro. Responsável pela consolidação da barba como símbolo do revolucionário latino-americano, Castro parece ter sido preterido pelo que é e representa -ordem-, e não pelo que foi e representou -rebeldia. O mesmo acontece com o rock, que está presente em tópicos paralelos -festivais, Elvis, Beatles e Rolling Stones-, mas nunca "autônomo".
Nessa era de extremos, a contestação vira ordem, rapidamente. E quem não aceita esse triste destino padece.
Nos verbetes do dicionários, casos como esse são correntes. Dois exemplos: o de Malcolm X e o dos marinheiros de Kronstadt, no mar Báltico.
Malcolm X, líder negro norte-americano, que pregava o direito à autodefesa dos negros, foi assassinado em Nova York em 1965.
Os militares de Kronstadt foram um dos motores da Revolução de 1905, que deu início ao processo que levaria os bolcheviques ao poder em 1917. Em 1921, quatro anos mais tarde, os marinheiros mais uma vez se revoltaram, agora contra a repressão política praticada pelos bolcheviques. Foram massacrados.


Livro: Le Siècle Rebelle - Dictionaire de la Constestation au 20e Siècle
Organização: Emmanuel de Waresquiel
Lançamento: Larousse
Quanto: R$ 132,30 (importado pela livraria Cultura)


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