São Paulo, sábado, 03 de agosto de 2002

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Português desmonta mito nacional

DA REPORTAGEM LOCAL

Entre os versos de "Os Lusíadas" e os de "Mensagem", Helder Macedo prefere os primeiros. Não que rejeite a figura ilustre de seu também conterrâneo Fernando Pessoa, mas é mais na direção do épico de Camões que se inclina "Vícios e Virtudes", seu mais recente romance a sair no Brasil.
Trata-se aqui de posicionar a trama de "Vícios e Virtudes" com relação a um dos maiores mitos nacionais de Portugal: o sebastianismo -a crença de que o rei dom Sebastião, morto no norte da África em cruzada contra os mouros, voltará das brumas marinhas.
É à empresa final do monarca que "Os Lusíadas" está dedicado. E é sua figura que se ergue, gloriosa, em "Mensagem". Um é realista; o outro, místico. Esta é uma pista para entender o ponto de vista do romance de Macedo.
"O que eu procuro fazer é desmontar totalmente a idéia do sebastianismo. Não é um romance nem sequer anti-sebastianista, é simplesmente recusa do sebastianismo como qualquer coisa de minimamente relevante", metralha Macedo, 66, em entrevista à Folha, durante passagem pelo Brasil para lançar o livro.
Por trás dessa aparente birra contra um mito frequentemente tido como fundante da identidade nacional portuguesa, a trama do romance tem uma bandeira mais elevada: questionar a imposição de qualquer identidade -seja a uma pessoa ou a um país.
Macedo se serve, para tanto, da misteriosa Joana, centro da trama de "Vícios e Virtudes".
Essa mulher, que parece não ter idade -numa sugestão de que poderia ser uma passageira com livre trânsito pelos séculos-, intriga dois escritores amigos, um deles o narrador do romance.
Seduzidos pela possibilidade de que ela seja a mãe de dom Sebastião, dona Joana, rediviva, os dois querem transformá-la em personagem de livros seus.
"O livro é fundamentalmente sobre uma pessoa que se recusa a aceitar identidades impostas. Na nossa sociedade ocidental cristã, quem tem tido identidades (sociais, sexuais etc.) impostas é a mulher. Como tal, a personagem tinha de ser feminina."
Joana é uma jogadora; como exímia apreciadora do carteado, se esmera no blefe. A trama se arma a partir de mensagens dúbias da moça aos seus dois escritores. Ao longo do livro, não só os escritores personagens como o próprio leitor se perdem entre o que é ou não parte real da vida de Joana.
Com o livro, além de fazer justiça às mulheres ("Eu acho que seria uma grande pena se o feminismo só pertencesse às mulheres, não é?"), Macedo espera confrontar não só a tal "identidade" de seu país mas também a idéia de que possa existir qualquer identidade nacional.
"Você sabe que, no caso de Portugal, há a idéia do sebastianismo, mas outros países têm outras idéias sobre si próprios. Os ingleses têm os seus mitos próprios, suas falsas identidades que projetam -sei lá, o sangue frio inglês, essas coisas. Bom, e eles são tão malcriados como nós, não é?", defende o autor.
Alguns dados da biografia de Macedo surgem no enredo de "Vícios e Virtudes", concentrados no narrador ("o escritor menos parvo", define) -como o fato de, igual a seu personagem, ele ser professor em Londres (radicado há muitos anos na Inglaterra, o autor leciona no King's College).
A apropriação de sua própria figura e a opção por personagens escritores legitimam a idéia de que "Vícios e Virtudes" fala também do ofício de escritor -o qual, afinal, consiste em forjar personalidades (ou identidades, se preferir).
Macedo concorda: "É uma análise, uma exemplificação romanesca do próprio processo de criação do romance, porque eu acho que todos os escritores -eu, certamente- concebem personagens, concebem pessoas".
Em seguida, o escritor reitera outra crença difundida sobre a criação literária: os personagens adquirem vida própria. "A Joana é inventada. Não é ninguém que eu conheça. No entanto ela adquire no contexto do romance uma realidade própria", diz Macedo.
"Foi isso que eu quis mostrar e que se manifestou na própria estrutura do romance, que avança, recua, vai para um lado, vai para o outro lado, porque ela, a personagem, está dando informações que podem ser falsas e que podem ser verdadeiras e, às vezes, são as duas coisas ao mesmo tempo."
(FRANCESCA ANGIOLILLO)


VÍCIOS E VIRTUDES - De: Helder Macedo. Editora: Record (tel. 0/xx/21/ 2585-2000, www.record.com.br). Primeira edição. 224 págs. R$ 30.


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