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NINA HORTA
Uma Veneza cabocla
Parati é nossa caixa de bombons, com baías cor de creme de mexerica e cheiro de veludo grosso e velho
PARATI É nossa caixa de bombons, como aquela que Eric
Clapton mandou para George
Harrison e ele, criativo, fez uma canção em torno dos recheios de cada
um dos chocolates. O neto escuta a
música repetidamente no iPod,
"what you eat you aaaaare!!!!".
Começamos com um almocinho
de muita farinha, farinha básica,
fundadora, fricativa, fúlvida, farofa,
fiel. O feijão grosso, a couve da horta,
a carne assada desfiando no molho
enferrujado, o doce de abóbora, mole, de fogão de lenha, quase sem açúcar, o queijo muito branco e meio
borrachento para comer com doce
de laranja. E mais uma goiabada.
Para fazer a digestão nos embrenhamos mato adentro. Ali, ali mesmo na porta, a mata atlântica, graças
às ONGs, ao prefeito, à Flip, sabe-se
lá quem, virou uma jângal de novo,
os morros, aqueles elefantes pesados, ficaram impenetráveis de verde, mais pesados ainda.
Estamos loucos para visitar as
obras da nova casa de um amigo, que
é nosso vizinho de matagal fechado,
será que ele está construindo a nova
Bagdá, como era o medo de Silvio?
Uma trilha no mato e dez metros depois, um platô de pedra por onde se
enxerga a baía inteira, justamente
esta baía cor de creme de mexerica,
o que significa entre vermelho, amarelo e laranja. Que coisa mais linda,
uma moça com jeito de velha, ou vice-versa. Debret voltou enlouquecido e passou vermelho em tudo.
"Cool cherry cream."
Parati tem dessas coisas, uma visão assim e está paga a viagem, fim
de papo. E o nosso amigo provavelmente vai fazer uma casa escondida
no mato, de olho naquele pedaço de
beleza móvel, cada estação privilegiando uma cor, cada barco mimetizando os ingredientes da terra, marrons como cocos, verdes como cocos, brancos como cocos, pescadores e suas redes, a varanda mais linda do mundo.
Fomos descendo para a cidade devagar, com medo de que acabasse toda cor, mas não. Mais surpresa, a
maré subindo, a água batendo no jipe por cima das rodas, gôndola sui
generis, é Savoy Truffle, um bombonzão com recheio de Veneza cabocla. Água espelho sem palácios,
mas um não-sei-quê de passado, de
passos de gente amada.
O cheiro é igual também, cheiro de
veludo grosso, escuro e velho.
E, por falar em Veneza, quem nos
olha lá de longe, com um olho só? A
casa da mãe de Thomas Mann, a
mulher morena, tropical, só que
com coque de alemã, séria, mas Zúlia, sempre Zúlia.
No centro da cidade, os carrinhos
de vendedores de doces não deixariam Harrison desapontado. São diferentes, enormes, quadriculados
em bandejas, nada de "ginger sling
with the pineapple heart", mas queijadinha, quebra-queixo, pé-de-moleque, maria-mole, cocada queimada e branca, cuscuz com coco. É, coconut fudge até que tem.
A cidade está crescendo, tanto em
sabedoria quanto em idade. Sem juízo só o novo supermercado, enorme
e feio, que vai destruindo as vendinhas de carne-seca, peixe salgado,
mandioca, inhame, cará e frutas
anãs. Mais iluminado que a Broadway, ele se acha, mas é uma aberração, que remédio, alguns pensam
que é sinal de progresso, deixa pra lá.
Quem estará por trás disso, procurando a beleza e a graça? Aquele rio
que ninguém ligava e que todos
construíam bares de costas para ele,
tomou vergonha, está se enchendo
de pedras nas margens, um ar civilizado, barquinhos nas portas, gente
em mesas viradas para a água, bebendo, "coffee dessert", bombom
escuro arrodeado de pedrinhas
brancas.
As nuvens, como filtros, coam o
sol em feixes de luz, efeito santinho,
jorros do coração de Jesus, veni creator spiritus, mentes tuorum visita, e
poupem-nos dos morceguitos à
noite, estatelados na parede do
quarto e das verdes pererecas no
terraço. "Nice apple tart", amém.
ninahorta@uol.com.br
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