São Paulo, quinta-feira, 03 de agosto de 2006

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NINA HORTA

Uma Veneza cabocla

Parati é nossa caixa de bombons, com baías cor de creme de mexerica e cheiro de veludo grosso e velho

PARATI É nossa caixa de bombons, como aquela que Eric Clapton mandou para George Harrison e ele, criativo, fez uma canção em torno dos recheios de cada um dos chocolates. O neto escuta a música repetidamente no iPod, "what you eat you aaaaare!!!!".
Começamos com um almocinho de muita farinha, farinha básica, fundadora, fricativa, fúlvida, farofa, fiel. O feijão grosso, a couve da horta, a carne assada desfiando no molho enferrujado, o doce de abóbora, mole, de fogão de lenha, quase sem açúcar, o queijo muito branco e meio borrachento para comer com doce de laranja. E mais uma goiabada.
Para fazer a digestão nos embrenhamos mato adentro. Ali, ali mesmo na porta, a mata atlântica, graças às ONGs, ao prefeito, à Flip, sabe-se lá quem, virou uma jângal de novo, os morros, aqueles elefantes pesados, ficaram impenetráveis de verde, mais pesados ainda.
Estamos loucos para visitar as obras da nova casa de um amigo, que é nosso vizinho de matagal fechado, será que ele está construindo a nova Bagdá, como era o medo de Silvio?
Uma trilha no mato e dez metros depois, um platô de pedra por onde se enxerga a baía inteira, justamente esta baía cor de creme de mexerica, o que significa entre vermelho, amarelo e laranja. Que coisa mais linda, uma moça com jeito de velha, ou vice-versa. Debret voltou enlouquecido e passou vermelho em tudo. "Cool cherry cream."
Parati tem dessas coisas, uma visão assim e está paga a viagem, fim de papo. E o nosso amigo provavelmente vai fazer uma casa escondida no mato, de olho naquele pedaço de beleza móvel, cada estação privilegiando uma cor, cada barco mimetizando os ingredientes da terra, marrons como cocos, verdes como cocos, brancos como cocos, pescadores e suas redes, a varanda mais linda do mundo.
Fomos descendo para a cidade devagar, com medo de que acabasse toda cor, mas não. Mais surpresa, a maré subindo, a água batendo no jipe por cima das rodas, gôndola sui generis, é Savoy Truffle, um bombonzão com recheio de Veneza cabocla. Água espelho sem palácios, mas um não-sei-quê de passado, de passos de gente amada.
O cheiro é igual também, cheiro de veludo grosso, escuro e velho. E, por falar em Veneza, quem nos olha lá de longe, com um olho só? A casa da mãe de Thomas Mann, a mulher morena, tropical, só que com coque de alemã, séria, mas Zúlia, sempre Zúlia.
No centro da cidade, os carrinhos de vendedores de doces não deixariam Harrison desapontado. São diferentes, enormes, quadriculados em bandejas, nada de "ginger sling with the pineapple heart", mas queijadinha, quebra-queixo, pé-de-moleque, maria-mole, cocada queimada e branca, cuscuz com coco. É, coconut fudge até que tem.
A cidade está crescendo, tanto em sabedoria quanto em idade. Sem juízo só o novo supermercado, enorme e feio, que vai destruindo as vendinhas de carne-seca, peixe salgado, mandioca, inhame, cará e frutas anãs. Mais iluminado que a Broadway, ele se acha, mas é uma aberração, que remédio, alguns pensam que é sinal de progresso, deixa pra lá.
Quem estará por trás disso, procurando a beleza e a graça? Aquele rio que ninguém ligava e que todos construíam bares de costas para ele, tomou vergonha, está se enchendo de pedras nas margens, um ar civilizado, barquinhos nas portas, gente em mesas viradas para a água, bebendo, "coffee dessert", bombom escuro arrodeado de pedrinhas brancas.
As nuvens, como filtros, coam o sol em feixes de luz, efeito santinho, jorros do coração de Jesus, veni creator spiritus, mentes tuorum visita, e poupem-nos dos morceguitos à noite, estatelados na parede do quarto e das verdes pererecas no terraço. "Nice apple tart", amém.


ninahorta@uol.com.br

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