São Paulo, segunda, 3 de agosto de 1998

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LIVROS
Indiana aponta saída para globalização
Evelson de Freitas/Folha Imagem
Gita Mehta, autora do livro 'Escadas e Serpentes'


ALVARO MACHADO
especial para a Folha


Da mesma maneira que a capa brasileira do livro "Escadas e Serpentes" impressiona pelo colorido visceral, característico da Índia, sua autora Gita Mehta causa efeito vestida de sari escarlate, a pintura do "terceiro olho" aplicada na testa.
Com seu inglês britanicamente correto, Mehta metralha frases como repórter radiofônica. Entrevistas são mesmo uma rotina para a primeira escritora indiana que logrou sucesso fora de seu país -atualmente ela divide seu tempo entre Índia, Europa e Nova York. Seus livros têm traduções em várias línguas.
"Escadas", que acaba de sair pela Companhia das Letras, é uma fieira de crônicas em estilo reportagem sobre a modernização da Índia -política, sociedade e cultura.
Também pela Companhia das Letras, a autora fez certo sucesso no Brasil em 96 com os contos de "O Monge Endinheirado, a Mulher do Bandido e Outras Histórias de um Rio Indiano", sobre a busca do conhecimento às margens do curso sagrado do Narmada.
Chegada de Nova York para lançar "Escadas" em São Paulo e aparentemente imune ao "jet lag", a escritora festejava, antes da entrevista à Folha, um convite para assistir a show de MPB: "Espero que haja muita adrenalina", entusiasmava-se.
Na cidade, daria uma conferência sobre seu novo livro, e em seguida se embrenharia pela selva amazônica, em viagem de observação que pode render futuras narrativas.
Entusiasmo verdadeiro, aliás, a escritora revelou na entrevista, ao tocar o tema "globalização". Para ela, a antropofagia "a la indiane" (no sentido modernista do termo) é um meio de vencer essa "nova ameaça de massificação norte-americana". A seguir trechos da entrevista.

Pergunta - A senhora ataca violentamente Indira Gandhi em "Escadas e Serpentes". Por quê?
Gita Mehta -
Seu governo foi o único, em 50 anos de independência da Índia, em que o processo democrático foi suspenso. Foi por ocasião de seu processo por corrupção. Quando a corte ficou contra ela. Indira suspendeu a democracia e colocou todos na prisão. Foi uma atitude muito ruim, pois institucionalizou a corrupção.
Ao contrário do Paquistão e do Brasil, nós não tivemos a democracia suspensa por formas de intervenção militar. Na Índia foi pior, porque a democracia foi suspensa em nome da própria democracia.
Pergunta - A senhora pretende se candidatar a algum cargo político algum dia?
Mehta -
Acho que uma obra escrita tem mais durabilidade que um discurso.Escrever pode ser uma reação, uma análise ou a própria causa de acontecimentos.
Por exemplo: até a publicação de meu livro "Karma Cola", o indiano escrevia em inglês de forma muito colonizada. Tínhamos de provar sempre que escrevíamos corretamente, obedecendo às regras gramaticais do século 19, caso contrário seríamos considerados iletrados. "Karma Cola" foi escrito sem essa preocupação e criou uma nova estrutura jornalística, legitimado a forma como falávamos a língua. Assim, acredito que o ato de escrever é político.
Pergunta - Com tem sido sua atividade cinematográfica?
Mehta -
Eu sou antiga, comecei na era pré-vídeo. Fiz 12 ou 13 filmes, e todos eram documentários políticos.
Pergunta - O que achou do filme "A Rainha Bandida", que foi exibido também no Brasil?
Mehta -
O filme trata o episódio como luta de classes. Porém, sabe-se que a Rainha Bandida não foi estuprada, como sugerido, por membros de classe superior, mas pelos de sua própria classe. Mais importante é ver o filme como retrato da vulnerabilidade da mulher indiana. Quanto à figura em si, acho-a meio louca. Ela não matou somente por vingança, ela gostava disso. Depois foi considerada ativista política, elegeu-se etc. Mas pegava o megafone e cantava músicas de filmes, sentindo-se estrela de cinema, enquanto atirava nas pessoas.
Nas eleições anteriores, a imprensa internacional deu enorme destaque à Rainha Bandida, mas o que de fato importava é que éramos meio bilhão de eleitores, falando 18 línguas e votando num governo comum. Isso sim, é espetacular.
Pergunta - Que qualidades o cinema indiano apresenta hoje?
Mehta -
Nós somos um povo que conta histórias, temos a força da narrativa, que considero perdida no mundo ocidental, que se tornou demasiadamente mecânico. Na Índia, perguntamos às pessoas de onde e quem são e queremos realmente ouvir suas respostas.
Uma vez, conversando com o romancista Philip Roth, disse-lhe que não importa que eu seja boa ou má escritora, mas sim ter à minha disposição cinco mil anos de histórias. Ele respondeu que não ouviu sequer uma história nos últimos 25 anos. Essa cultura americana é destituída. O fascínio pelas histórias dos outros acabou, e no fundo cultura é humanismo.
Pergunta - Que outros autores a senhora sugere para uma melhor compreensão da Índia, E.M. Forster ("Passagem para a Índia") talvez?
Mehta -
Forster tinha uma história pessoal ambígua e transferiu isso para sua obra literária. Ele trabalhava como secretário particular de um rei indiano e retratava fraquezas do império britânico. No meu segundo livro, "Rajit", mostro que, na verdade, os ingleses eram fortes, a ponto de, mais que ensinar o povo a pensar como escravo, fazer com que os reis aprendessem a agir como escravos. Mesmo com toda sua posição colonialista, eu indico Kipling como alguém que paradoxalmente entendia a Índia, ainda que odiasse os indianos. Ele tinha um ouvido perfeito para as frases, podia ter sido músico.
Pergunta - De que trata o seu livro "Karma Cola"?
Mehta -
Estávamos no final dos anos 60 e começo dos 70 e esperávamos a festa chegar até nós. Éramos uma cultura ancestral e desejávamos a novidade, o rock'n'roll. Quando Allen Ginsberg, os Beatles, os Rolling Stones, Mia Farrow e todos chegaram, finalmente, fomos recebê-los no aeroporto, e o que vimos? Gente vestida com roupas indianas, entoando mantras e ansiando pela salvação instantânea. E nós, os indianos, usávamos t-shirts, jeans e cantávamos rock. Não queríamos a salvação, mas os brinquedos da "civilização". Foi um terrível choque de culturas. "Karma Cola" é sobre isso.
Pergunta - Como a Índia está reagindo à globalização?
Mehta -
Esta é uma questão para o mundo inteiro. Não somos como a China ou como o Japão: recebemos a todos, não fechamos nossas portas. Por "globalização" entendemos a América e seus produtos eletrônicos.
Somos ainda mais vulneráveis que o Brasil, porque não existe a barreira linguística para deter essa enorme onda. Mas a Índia pode evitar que o mundo se transforme numa imensa Disneylândia. Podemos usufruir da eletrônica e da globalização tornando-a orgânica, através de adaptação. Se conseguirmos, teremos resolvido o problema para o resto do mundo, pois somos um bilhão de pessoas, um bilhão de anarquistas.
Quando se imita um modelo, já se está um passo atrás, e imitando um americano serei apenas um americano de segunda categoria. Não partilho do atual conceito de modernidade. Para mim, moderno é pegar o novo e transformá-lo em algo ainda mais novo. Então, a grande questão é se aceitamos o conceito norte-americano de modernidade ou pegamos toda essa maquinaria e a transformamos em algo orgânico, para que o mundo continue heterogêneo.


Livro: Escadas e Serpentes
Autora: Gita Mehta
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 20 (204 págs.)



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