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MARCELO COELHO
O mundo dos antigripais e dos xaropes
Andei afônico na última semana, e com todos os sintomas correlatos: garganta irritada,
tosse, obstrução das vias respiratórias (para falar como as bulas
de remédio) e, sem dúvida, fortes
sinais de impaciência. A sensação
que eu tinha era de estar gritando
o tempo todo, sem que ninguém
me ouvisse, e de tanto gritar a
gente corre o risco de ficar furioso.
Sou um grande consumidor de
remédios, em especial os que não
servem para nada e os que servem
para tudo; há prateleiras especiais nas farmácias para comprimidos de berinjela, alcachofra,
cascas de crustáceos. Não sei o
que curam, o que previnem; na
pior das hipóteses, devem ser bons
para o fígado. Todo brasileiro
acha que sofre do fígado, aliás. Eu
não sofro, mas compro. Comprar
faz bem para o organismo em geral.
A tosse me deu pretexto para
entrar no mundo dos antigripais
e dos xaropes. Meus experimentos
nessa área seguem critérios estritos. Procuro os remédios de nome
mais simpático, óbvio e popular.
Nada de comprimidos de AAS,
por exemplo, se posso recorrer a
um clássico como Melhoral. Ou o
mais recente Doril.
Melhoral é imbatível. Com seu
otimismo gradualista, vago, quase modesto, é o remédio dos remédios; promete melhoras. Eis um
nome que resume toda a medicina. Doril, sob esse aspecto, é até
mais científico. Restringe-se a
uma moléstia precisa, a dor; talvez a dor aguda, a dor fina, que se
expressa no "i" do nome.
Faça-se aqui uma homenagem
ao mais vago de todos os nomes
de remédio, que nem de remédio
é: Sonrisal, algo entre o sol e o sorriso, flutuando branco num copo
do mais puro e expansivo bem-estar.
Em resumo, gosto dos remédios
que já são a própria receita; os remédios cujo rótulo é a própria bula; os que trazem dentro de si a
doença e a cura. Os produtos para
emagrecer, por exemplo: Magrix,
Obesonon. Entre a respiração e o
resfriado, Resprin. Para azia, dor
de estômago, Estomazil: recomendo o sabor abacaxi, que traz
à língua uma sensação de acidez
neutralizada. Mas Digesan também serve.
Um médico contou-me que, em
tempos idos, lançaram na praça
um produto chamado Diarrhon.
Não sei se é verdade, mas como
para hemorróidas existe o Anusol, tudo é possível.
O capítulo dos expectorantes e
antitussígenos é, certamente, o
mais extenso. Por que comprar
um xarope tão neutro e lacônico
como o M.M., e mesmo o drummondiano Bromil, se há nas prateleiras o Pulmomel? O Bronquivita? O Mucotoss?
Alguns até exageram na simplicidade. Um dos mais populares é
o Tiratosse, mas aí se perde toda a
poesia da coisa. O Melagrião é
honesto, só que doméstico demais. Tudo fica melhor quando o
nome do remédio tem uma ponta
de inexplícito, operando pela
aproximação; ao eliminar uma
vogal, ou reservando um x para o
fim, consegue-se o efeito de sugerir algo de técnico, de químico, de
laboratorial. Broncoflux, por
exemplo; ou Mucoflon, ou Expec.
O mais elegante, nessa linha, é o
Fluimucil, quase abstrato na sua
referência a muco e a fluir. O mais
rude, obra de engenharia industrial, é o Bronxol. Sabor menta,
incolor, sem açúcar. Coisa de macho.
Se considero todos esses nomes
divertidos, e mesmo tocantes, é
porque parecem registrar, no ambiente asséptico e estéril das farmácias, os traços de uma cultura
popular, ingênua, transparente
em suas intenções de significação.
Tudo é o que é: o remédio que
tira a tosse se chama Tiratosse, do
mesmo modo que, numa padaria,
um pão é chamado de pão, e
quem pedir um pão com queijo
terá um pão com queijo. Em outro artigo já falei dessa utopia de
transparência, de literalidade absoluta. Dos cartazes de beira de
estrada aos nomes de remédio,
existe um sistema de representações que aparentemente desconhece a obliquidade, a ironia, e
talvez a ...arte.
Pelo menos se entendermos como mais "artístico" tudo aquilo
que foge da réplica do real. Um
nome de xarope como M.M. é a
arte abstrata, a arte erudita da
farmacopéia pulmonar. Os Tiratosses e Estomazis são a pintura
figurativa, a presentificação quase mágica do puro significado, da
referência sem espessura, do real.
A diferença entre um Melhoral
e um AAS talvez seja a diferença
entre a pintura acadêmica e a arte moderna. Se isso for verdade,
creio ter encontrado nas prateleiras da farmácia os primeiros
exemplares do pós-modernismo
em matéria de nome de remédio.
É que surgiu um descongestionante nasal de nome simples, irresistível mercadologicamente, e
ao mesmo tempo irônico, oblíquo.
Trata-se do Snif. Existe mesmo.
Snif. Um nome desses vale um
resfriado. Substituiu-se o realismo figural (Nasoflux, que sei eu)
pela onomatopéia.
A referência às histórias em
quadrinhos, apesar de reconhecível, não é ingênua, mas sim irônica. Um nome de remédio irônico... há outro, um pouco menos,
mas que vai na mesma linha: são
pastilhas para tosse, do tipo Benalet, mas que tem o nome de
Endcoff.
Uma nova transparência de significados -que presume, entre
outras coisas, o traquejo com os
códigos da cultura de massa e a
familiaridade globalizada com o
inglês- surge aqui, pós-modernamente, carregada de subentendidos e sem nenhum traço de rusticidade popular. Ao mesmo tempo estéril, asséptico, e imediato,
sem rodeios, sem mistérios, Snif é
o nome de remédio do século 21.
Que se cuidem os Sonrisais e Digesans.
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