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São Paulo, quarta-feira, 03 de setembro de 2003

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MARCELO COELHO

O mundo dos antigripais e dos xaropes

Andei afônico na última semana, e com todos os sintomas correlatos: garganta irritada, tosse, obstrução das vias respiratórias (para falar como as bulas de remédio) e, sem dúvida, fortes sinais de impaciência. A sensação que eu tinha era de estar gritando o tempo todo, sem que ninguém me ouvisse, e de tanto gritar a gente corre o risco de ficar furioso.
Sou um grande consumidor de remédios, em especial os que não servem para nada e os que servem para tudo; há prateleiras especiais nas farmácias para comprimidos de berinjela, alcachofra, cascas de crustáceos. Não sei o que curam, o que previnem; na pior das hipóteses, devem ser bons para o fígado. Todo brasileiro acha que sofre do fígado, aliás. Eu não sofro, mas compro. Comprar faz bem para o organismo em geral.
A tosse me deu pretexto para entrar no mundo dos antigripais e dos xaropes. Meus experimentos nessa área seguem critérios estritos. Procuro os remédios de nome mais simpático, óbvio e popular. Nada de comprimidos de AAS, por exemplo, se posso recorrer a um clássico como Melhoral. Ou o mais recente Doril.
Melhoral é imbatível. Com seu otimismo gradualista, vago, quase modesto, é o remédio dos remédios; promete melhoras. Eis um nome que resume toda a medicina. Doril, sob esse aspecto, é até mais científico. Restringe-se a uma moléstia precisa, a dor; talvez a dor aguda, a dor fina, que se expressa no "i" do nome.
Faça-se aqui uma homenagem ao mais vago de todos os nomes de remédio, que nem de remédio é: Sonrisal, algo entre o sol e o sorriso, flutuando branco num copo do mais puro e expansivo bem-estar.
Em resumo, gosto dos remédios que já são a própria receita; os remédios cujo rótulo é a própria bula; os que trazem dentro de si a doença e a cura. Os produtos para emagrecer, por exemplo: Magrix, Obesonon. Entre a respiração e o resfriado, Resprin. Para azia, dor de estômago, Estomazil: recomendo o sabor abacaxi, que traz à língua uma sensação de acidez neutralizada. Mas Digesan também serve.
Um médico contou-me que, em tempos idos, lançaram na praça um produto chamado Diarrhon. Não sei se é verdade, mas como para hemorróidas existe o Anusol, tudo é possível.
O capítulo dos expectorantes e antitussígenos é, certamente, o mais extenso. Por que comprar um xarope tão neutro e lacônico como o M.M., e mesmo o drummondiano Bromil, se há nas prateleiras o Pulmomel? O Bronquivita? O Mucotoss?
Alguns até exageram na simplicidade. Um dos mais populares é o Tiratosse, mas aí se perde toda a poesia da coisa. O Melagrião é honesto, só que doméstico demais. Tudo fica melhor quando o nome do remédio tem uma ponta de inexplícito, operando pela aproximação; ao eliminar uma vogal, ou reservando um x para o fim, consegue-se o efeito de sugerir algo de técnico, de químico, de laboratorial. Broncoflux, por exemplo; ou Mucoflon, ou Expec.
O mais elegante, nessa linha, é o Fluimucil, quase abstrato na sua referência a muco e a fluir. O mais rude, obra de engenharia industrial, é o Bronxol. Sabor menta, incolor, sem açúcar. Coisa de macho.
Se considero todos esses nomes divertidos, e mesmo tocantes, é porque parecem registrar, no ambiente asséptico e estéril das farmácias, os traços de uma cultura popular, ingênua, transparente em suas intenções de significação.
Tudo é o que é: o remédio que tira a tosse se chama Tiratosse, do mesmo modo que, numa padaria, um pão é chamado de pão, e quem pedir um pão com queijo terá um pão com queijo. Em outro artigo já falei dessa utopia de transparência, de literalidade absoluta. Dos cartazes de beira de estrada aos nomes de remédio, existe um sistema de representações que aparentemente desconhece a obliquidade, a ironia, e talvez a ...arte.
Pelo menos se entendermos como mais "artístico" tudo aquilo que foge da réplica do real. Um nome de xarope como M.M. é a arte abstrata, a arte erudita da farmacopéia pulmonar. Os Tiratosses e Estomazis são a pintura figurativa, a presentificação quase mágica do puro significado, da referência sem espessura, do real.
A diferença entre um Melhoral e um AAS talvez seja a diferença entre a pintura acadêmica e a arte moderna. Se isso for verdade, creio ter encontrado nas prateleiras da farmácia os primeiros exemplares do pós-modernismo em matéria de nome de remédio.
É que surgiu um descongestionante nasal de nome simples, irresistível mercadologicamente, e ao mesmo tempo irônico, oblíquo. Trata-se do Snif. Existe mesmo. Snif. Um nome desses vale um resfriado. Substituiu-se o realismo figural (Nasoflux, que sei eu) pela onomatopéia.
A referência às histórias em quadrinhos, apesar de reconhecível, não é ingênua, mas sim irônica. Um nome de remédio irônico... há outro, um pouco menos, mas que vai na mesma linha: são pastilhas para tosse, do tipo Benalet, mas que tem o nome de Endcoff.
Uma nova transparência de significados -que presume, entre outras coisas, o traquejo com os códigos da cultura de massa e a familiaridade globalizada com o inglês- surge aqui, pós-modernamente, carregada de subentendidos e sem nenhum traço de rusticidade popular. Ao mesmo tempo estéril, asséptico, e imediato, sem rodeios, sem mistérios, Snif é o nome de remédio do século 21. Que se cuidem os Sonrisais e Digesans.


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