São Paulo, sexta-feira, 03 de setembro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Quem é esse João Luís?

O mais fácil fora feito. Afinal, eu me movimentava livremente no quarto de minha mãe, sabia todos os seus segredos e mistérios. Quando decidi roubar as jóias, me preocupei apenas em não dar mancada, não deixar nenhuma pista que me acusasse. Não pensei em mais nada, nem na consciência, na moral, no ato sujo que tencionava fazer. Minha missão era prioritária: eu precisava comprar uma guitarra elétrica para que o João Luís ficasse amigo do meu irmão e não o fizesse sofrer. Isso me justificava. Um dia, mais tarde, confessaria tudo. E minha mãe, como sempre, me desculparia. Mais: ela se edificaria com a retidão do meu caráter, com a bondade do meu coração.
Mas o diabo é que pensara apenas no roubo, no ato de apanhar as jóias, o que fora fácil, sem problemas. Agora, no escuro da noite, puxando as cobertas até o pescoço para me esconder não sei de quê, eu não sabia o que fazer para transformar aquelas jóias em dinheiro e em guitarra elétrica. Chegar à loja, jogar no balcão aqueles colares, brincos e anéis e dizer "está aqui, agora me dêem a guitarra elétrica, com as caixas de som e tudo" seria impossível. Vender onde? Quem compraria aquilo de um menino de 12, 13 anos?
Houve um momento em que cheguei a pensar numa besteira: levar as jóias para o colégio, esperar pelo amigo do meu irmão, entregar-lhe tudo e dizer: "Pronto, agora se vire, aí tem muito dinheiro, pode comprar duas, três guitarras elétricas!". Não era uma solução ideal, mas foi a melhor que arranjei. No dia seguinte, à luz do dia, pensaria em outra coisa. E foi assim que consegui adormecer.
Acordei com o pai e a mãe em volta da minha cama. Olhavam-me com curiosidade, mais curiosidade do que tristeza. A mãe tinha chorado, eu a conhecia bem, sabia que o nariz dela ficava um pouco avermelhado. Olhei para o canto onde deixara a sacola. Lá estava: tal como a deixara.
Tentei ainda dar o golpe, virei-me para o lado, como se fosse continuar o sono.
-Alfredo, você não vai ao colégio? -A voz do pai era serena, mas estranha. Eu também conhecia aquele tipo de voz.
-Sim... Que horas são?... Estou atrasado?
-Não, você não está atrasado... Mas precisa acordar agora. Precisamos ter uma conversa.
Eu me levantei, fingi dificuldade em espantar o sono. Encarei a mãe com ansiedade, pedindo-lhe sem palavras que intercedesse por mim. Eu sabia que nada de bom sairia daquela conversa. Disfarcei o que pude e olhei novamente a sacola, para ver se estava no mesmo lugar, se haviam mexido nela. Tranqüilizei-me. Impossível que tivessem descoberto o meu roubo. Eu tirara as jóias à noite, logo depois do jantar. A mãe não ia sair, ficaria assistindo à TV, depois dormiria, não mexeria na gaveta de fundo falso. O que eu precisava era manter os nervos no lugar, não revelar o meu segredo.
-Posso ir escovar os dentes?
-Ainda não. Tenho que estar na clínica daqui a pouco e preciso conversar com você. Já acordou mesmo? Está em condições de me ouvir?
A voz do pai agora era severa, quase irritada. Procurei fazer um exame de consciência para ver se descobria alguma outra falta que justificasse a seriedade daquela reunião matutina em meu quarto, com as lágrimas de minha mãe, que já voltara a chorar, apertava o pequenino lenço de encontro ao nariz, os olhos pingavam.
-Mas... O que que há, pai? Qual é o grilo?
-Onde está o seu irmão?
Dei um pulo da cama. Então era isso! Alberto não viera para casa, passara a noite fora, deveria ter saído com o João Luís.
-Não sei, pai, sinceramente não sei...
-Ele não voltou para casa!
-Telefonaram para a polícia? Para o pronto-socorro? Eu conhecia vagamente o que se costuma fazer nessas circunstâncias, só não tinha coragem de falar em necrotério, embora soubesse que era um dos locais indicados para procurar desaparecidos.
-Não precisa se assustar. Ele já telefonou, agora de manhã, avisando que tudo vai bem. Apenas não disse onde estava. Nem por que tinha ido embora!
A mãe deu um soluço mais forte. O pai se conteve para não explodir -não sei se em raiva ou em lágrimas também.
-Veja agora a minha situação! Faço tudo por vocês... Dou o melhor... E recebo como paga esta... esta...
Ele quase dizia um palavrão, mas se controlava porque tinha a mãe ao lado.
-Mas você deve saber alguma coisa. Deve saber onde ele está. Com quem ele anda...
-Não sei de nada, pai! Juro que não sei de nada! Ele não me diz nada!
Pai e mãe se olharam. Os dois se fixaram, sérios, sofridos. Parecia que o mais importante seria revelado agora.
-Ele ligou há pouco -continuou o pai. Eu acabava de tomar o café, já tinha telefonado para a polícia, sua mãe estava desesperada. Fomos ao quarto dele, encontramos a cama intacta. Atendi ao telefone. Ouvi a voz dele. Foi simples: disse só que não voltava mais para casa. Sabe por quê?
Aumentou a voz:
-Sabe por quê?
O tom se alterara ao repetir a pergunta. Eu abanei a cabeça, atônito, sem compreender mais nada, pensando já num pesadelo absurdo do qual fazia força para acordar.
-Ele não volta por sua causa. Por sua causa! Quem é esse João Luís?


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