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CARLOS HEITOR CONY
Quem é esse João Luís?
O mais fácil fora feito. Afinal, eu me movimentava livremente no quarto de minha
mãe, sabia todos os seus segredos
e mistérios. Quando decidi roubar as jóias, me preocupei apenas
em não dar mancada, não deixar
nenhuma pista que me acusasse.
Não pensei em mais nada, nem
na consciência, na moral, no ato
sujo que tencionava fazer. Minha
missão era prioritária: eu precisava comprar uma guitarra elétrica
para que o João Luís ficasse amigo do meu irmão e não o fizesse
sofrer. Isso me justificava. Um
dia, mais tarde, confessaria tudo.
E minha mãe, como sempre, me
desculparia. Mais: ela se edificaria com a retidão do meu caráter,
com a bondade do meu coração.
Mas o diabo é que pensara apenas no roubo, no ato de apanhar
as jóias, o que fora fácil, sem problemas. Agora, no escuro da noite, puxando as cobertas até o pescoço para me esconder não sei de
quê, eu não sabia o que fazer para
transformar aquelas jóias em dinheiro e em guitarra elétrica.
Chegar à loja, jogar no balcão
aqueles colares, brincos e anéis e
dizer "está aqui, agora me dêem a
guitarra elétrica, com as caixas de
som e tudo" seria impossível.
Vender onde? Quem compraria
aquilo de um menino de 12, 13
anos?
Houve um momento em que
cheguei a pensar numa besteira:
levar as jóias para o colégio, esperar pelo amigo do meu irmão, entregar-lhe tudo e dizer: "Pronto,
agora se vire, aí tem muito dinheiro, pode comprar duas, três
guitarras elétricas!". Não era uma
solução ideal, mas foi a melhor
que arranjei. No dia seguinte, à
luz do dia, pensaria em outra coisa. E foi assim que consegui adormecer.
Acordei com o pai e a mãe em
volta da minha cama. Olhavam-me com curiosidade, mais curiosidade do que tristeza. A mãe tinha chorado, eu a conhecia bem,
sabia que o nariz dela ficava um
pouco avermelhado. Olhei para o
canto onde deixara a sacola. Lá
estava: tal como a deixara.
Tentei ainda dar o golpe, virei-me para o lado, como se fosse continuar o sono.
-Alfredo, você não vai ao colégio? -A voz do pai era serena,
mas estranha. Eu também conhecia aquele tipo de voz.
-Sim... Que horas são?... Estou
atrasado?
-Não, você não está atrasado... Mas precisa acordar agora.
Precisamos ter uma conversa.
Eu me levantei, fingi dificuldade em espantar o sono. Encarei a
mãe com ansiedade, pedindo-lhe
sem palavras que intercedesse por
mim. Eu sabia que nada de bom
sairia daquela conversa. Disfarcei
o que pude e olhei novamente a
sacola, para ver se estava no mesmo lugar, se haviam mexido nela.
Tranqüilizei-me. Impossível que
tivessem descoberto o meu roubo.
Eu tirara as jóias à noite, logo depois do jantar. A mãe não ia sair,
ficaria assistindo à TV, depois
dormiria, não mexeria na gaveta
de fundo falso. O que eu precisava
era manter os nervos no lugar,
não revelar o meu segredo.
-Posso ir escovar os dentes?
-Ainda não. Tenho que estar
na clínica daqui a pouco e preciso
conversar com você. Já acordou
mesmo? Está em condições de me
ouvir?
A voz do pai agora era severa,
quase irritada. Procurei fazer um
exame de consciência para ver se
descobria alguma outra falta que
justificasse a seriedade daquela
reunião matutina em meu quarto, com as lágrimas de minha
mãe, que já voltara a chorar,
apertava o pequenino lenço de
encontro ao nariz, os olhos pingavam.
-Mas... O que que há, pai?
Qual é o grilo?
-Onde está o seu irmão?
Dei um pulo da cama. Então
era isso! Alberto não viera para
casa, passara a noite fora, deveria
ter saído com o João Luís.
-Não sei, pai, sinceramente
não sei...
-Ele não voltou para casa!
-Telefonaram para a polícia?
Para o pronto-socorro? Eu conhecia vagamente o que se costuma
fazer nessas circunstâncias, só
não tinha coragem de falar em
necrotério, embora soubesse que
era um dos locais indicados para
procurar desaparecidos.
-Não precisa se assustar. Ele já
telefonou, agora de manhã, avisando que tudo vai bem. Apenas
não disse onde estava. Nem por
que tinha ido embora!
A mãe deu um soluço mais forte. O pai se conteve para não explodir -não sei se em raiva ou
em lágrimas também.
-Veja agora a minha situação! Faço tudo por vocês... Dou o
melhor... E recebo como paga esta... esta...
Ele quase dizia um palavrão,
mas se controlava porque tinha a
mãe ao lado.
-Mas você deve saber alguma
coisa. Deve saber onde ele está.
Com quem ele anda...
-Não sei de nada, pai! Juro
que não sei de nada! Ele não me
diz nada!
Pai e mãe se olharam. Os dois se
fixaram, sérios, sofridos. Parecia
que o mais importante seria revelado agora.
-Ele ligou há pouco -continuou o pai. Eu acabava de tomar
o café, já tinha telefonado para a
polícia, sua mãe estava desesperada. Fomos ao quarto dele, encontramos a cama intacta. Atendi ao telefone. Ouvi a voz dele. Foi
simples: disse só que não voltava
mais para casa. Sabe por quê?
Aumentou a voz:
-Sabe por quê?
O tom se alterara ao repetir a
pergunta. Eu abanei a cabeça,
atônito, sem compreender mais
nada, pensando já num pesadelo
absurdo do qual fazia força para
acordar.
-Ele não volta por sua causa.
Por sua causa! Quem é esse João
Luís?
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