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Ninguém é bom juiz em causa própria
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
A capacidade humana de julgar com isenção tende a declinar à medida que nos aproximamos de tudo aquilo que nos
afeta e interessa de perto. O véu
do auto-engano com frequência
encobre da visão que temos de
nós mesmos traços e falhas que
saltam aos olhos quando o que
está em tela é o caráter e a conduta dos demais.
A contemplação do mal
alheio agride a nossa sensibilidade e nos leva a uma atitude
de genuína reprovação. É fácil
como cobrar mais ética na política, clamar contra a mídia vulgar, acusar a globalização,
amar a natureza, detestar o
egoísmo ou indignar-se com o
som barulhento do vizinho. Tudo ótimo. O único problema é
que o olho de lince no olhar afora costuma ser apenas o avesso
do ponto cego no olhar adentro.
O czar naturalista do poeta
Drummond ilustra um caso extremo de assimetria na percepção do mal: "Era uma vez um
czar naturalista que caçava homens. Quando lhe disseram que
também se caçam borboletas e
andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade".
O espanto do czar é o reflexo
invertido do espanto do leitor.
A crueldade do outro, vista de
fora, difere da que cometemos
aos olhos dos demais. Os olhos
da cobra-verde não podem se
ver nem aterrar a si próprios. A
fumaça do carro em que estamos não nos irrita. O desejo de
pensar bem de si próprio torna
aceitável e inodoro por dentro
aquilo que fede e revolta vindo
de fora.
Até onde podemos ir na expulsão e supressão espontânea
daquilo que nos ofende em nós
mesmos? O extraordinário relato bíblico (2º livro de Samuel,
cap. 11 e 12) do desbloqueio moral do rei Davi, sob a mira certeira do profeta Natã, retrata
um episódio exemplar.
O belo acaricia o olhar. Fim
de tarde. O rei Davi, unificador
das doze tribos de Israel, está
ocioso e lânguido na varanda
mais alta do seu palácio, quando os seus olhos atinam com
uma bela mulher a banhar-se
na vizinhança. Manda logo saber quem é -Betsabéia, esposa
do soldado Urias- e faz com
que a tragam até ele.
Os dois se deitam. Betsabéia
volta para casa e não demora
em descobrir-se grávida. O pai
só pode ser Davi: Urias, ausente
a serviço, cumpre a abstinência
ritual dos que lutam em guerra
santa. Era imperioso agir. Se
nada fosse feito, a punição da
adúltera seria a morte por apedrejamento. O primeiro impulso do rei é escapar pela porta da
dissimulação, encobrindo a
real paternidade da criança do
conhecimento geral.
Davi ordena ao general Joab,
seu braço direito no exército,
que Urias retorne da guerra e
venha à sua presença. O rei tenta, então, persuadi-lo a ir passar alguns dias em casa, dormindo com a esposa. Acontece,
porém, que Urias é soldado leal,
rígido no cumprimento do dever. Em vez de ir para casa e
quebrar o rito da abstinência,
ele fica com os guardas no palácio e chega a admoestar o rei
por tentar desviá-lo do bom caminho.
A pressão aumenta. Davi, desnorteado, adota um plano criminoso. Manda Urias reintegrar-se às tropas em batalha e
envia, por seu intermédio, uma
carta a Joab com a seguinte instrução: "Colocai Urias bem em
frente, onde a peleja estiver
mais violenta, e apartai-vos de
modo que seja ferido e morra".
A carta foi entregue, e a ordem real, cumprida. Ao tomar
ciência da morte de Urias, Davi
simula pesar e exorta suas tropas a não esmorecerem na luta.
A viúva do herói cumpre um luto oportunamente breve e casa-
se em seguida com o rei. O primeiro filho do casal não tarda.
O exército israelita cerca e
rende a capital inimiga. A vida
retoma o seu curso normal. As
aparências foram salvas, e a
fealdade do crime, devidamente obliterada. Urias, para todos
os efeitos, morreu como um herói em ação. O repugnante
ofende o olhar. "Mas a conduta
de Davi desagradou aos olhos
do Senhor".
De início, nada ocorre. Quase
um ano havia se passado sem
que Davi houvesse demonstrado qualquer sinal de remorso
ou contrição. Um dia, porém,
tudo muda. O profeta Natã
aparece para uma visita e relata ao rei um episódio recente
sobre uma vila em que existiam
dois homens, um rico e outro
pobre.
O rico era dono de um farto
rebanho de bois e carneiros. O
pobre possuía uma única ovelha, que criava junto com os filhos, como se fosse membro da
família. Mas, quando o homem
rico recebeu um visitante de fora, ele mostrou o unha-de-fome
que era. Em vez de matar um
animal do seu rebanho, foi à
casa do pobre e pegou a sua
única ovelha para servi-la ao
visitante.
Ao ouvir tamanha injustiça, o
rei Davi, indignado, não se conteve: "O homem que fez isso
merece a morte; ele pagará
quatro vezes a ovelha por ter
feito uma coisa dessas, sem revelar pena". O profeta Natã, então, replica: "Esse homem é você!"
É só a partir dessa revelação
que a fúria e a espada divinas
desabam sobre a casa de Davi,
ceifando a vida de seu primeiro
filho com Betsabéia e semeando
a escalada do conflito na família real. Mas é aí também que a
enormidade do crime por ele
cometido atinge a sua consciência entorpecida com a força esmagadora de um raio.
O blecaute da culpa e a supressão espontânea da memória haviam devolvido a paz ao
palácio subjetivo do rei. O ardil
do profeta, porém, iluminou o
ponto cego em sua consciência.
O rei cai em si.
O profeta não acusa diretamente o rei. Ele aguça o senso
de justiça de Davi com a parábola dos dois homens, para daí
então girar o bisturi na mão do
rei e forçá-lo a cortar na própria carne. Natã encurrala Davi diante de Davi. Ele atrai o
monstro, atiça a fera, desprega
sutilmente a máscara e ergue o
espelho.
A injustiça que Davi não tinha dificuldade em descobrir
no outro, a ponto de condená-
lo com absurda severidade, ele
não era capaz de ver em si, apesar da gigantesca desproporção
entre a gravidade dos dois atos.
A visão repugnante do próprio crime refletido no espelho
da consciência -o ardil do
profeta- rompe o dique da
memória e da culpa represadas.
O cordão sanitário do esquecer
auto-enganado arrebenta, e o
passado se insurge. Davi desmascara Davi. O ponto cego enxergou.
Se alguma verdade da ética
merece possuir o status e a universalidade da lei da gravidade
na física, o preceito aristotélico
que encabeça este artigo (adaptado da "Política", 1280a15) é
forte candidato ao posto. O
grau de isenção dos nossos juízos morais varia na proporção
inversa da intensidade das nossas paixões e do nosso interesse
pessoal no caso.
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