São Paulo, quinta, 3 de setembro de 1998

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Ninguém é bom juiz em causa própria

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

A capacidade humana de julgar com isenção tende a declinar à medida que nos aproximamos de tudo aquilo que nos afeta e interessa de perto. O véu do auto-engano com frequência encobre da visão que temos de nós mesmos traços e falhas que saltam aos olhos quando o que está em tela é o caráter e a conduta dos demais.
A contemplação do mal alheio agride a nossa sensibilidade e nos leva a uma atitude de genuína reprovação. É fácil como cobrar mais ética na política, clamar contra a mídia vulgar, acusar a globalização, amar a natureza, detestar o egoísmo ou indignar-se com o som barulhento do vizinho. Tudo ótimo. O único problema é que o olho de lince no olhar afora costuma ser apenas o avesso do ponto cego no olhar adentro.
O czar naturalista do poeta Drummond ilustra um caso extremo de assimetria na percepção do mal: "Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade".
O espanto do czar é o reflexo invertido do espanto do leitor. A crueldade do outro, vista de fora, difere da que cometemos aos olhos dos demais. Os olhos da cobra-verde não podem se ver nem aterrar a si próprios. A fumaça do carro em que estamos não nos irrita. O desejo de pensar bem de si próprio torna aceitável e inodoro por dentro aquilo que fede e revolta vindo de fora.
Até onde podemos ir na expulsão e supressão espontânea daquilo que nos ofende em nós mesmos? O extraordinário relato bíblico (2º livro de Samuel, cap. 11 e 12) do desbloqueio moral do rei Davi, sob a mira certeira do profeta Natã, retrata um episódio exemplar.
O belo acaricia o olhar. Fim de tarde. O rei Davi, unificador das doze tribos de Israel, está ocioso e lânguido na varanda mais alta do seu palácio, quando os seus olhos atinam com uma bela mulher a banhar-se na vizinhança. Manda logo saber quem é -Betsabéia, esposa do soldado Urias- e faz com que a tragam até ele.
Os dois se deitam. Betsabéia volta para casa e não demora em descobrir-se grávida. O pai só pode ser Davi: Urias, ausente a serviço, cumpre a abstinência ritual dos que lutam em guerra santa. Era imperioso agir. Se nada fosse feito, a punição da adúltera seria a morte por apedrejamento. O primeiro impulso do rei é escapar pela porta da dissimulação, encobrindo a real paternidade da criança do conhecimento geral.
Davi ordena ao general Joab, seu braço direito no exército, que Urias retorne da guerra e venha à sua presença. O rei tenta, então, persuadi-lo a ir passar alguns dias em casa, dormindo com a esposa. Acontece, porém, que Urias é soldado leal, rígido no cumprimento do dever. Em vez de ir para casa e quebrar o rito da abstinência, ele fica com os guardas no palácio e chega a admoestar o rei por tentar desviá-lo do bom caminho.
A pressão aumenta. Davi, desnorteado, adota um plano criminoso. Manda Urias reintegrar-se às tropas em batalha e envia, por seu intermédio, uma carta a Joab com a seguinte instrução: "Colocai Urias bem em frente, onde a peleja estiver mais violenta, e apartai-vos de modo que seja ferido e morra".
A carta foi entregue, e a ordem real, cumprida. Ao tomar ciência da morte de Urias, Davi simula pesar e exorta suas tropas a não esmorecerem na luta. A viúva do herói cumpre um luto oportunamente breve e casa- se em seguida com o rei. O primeiro filho do casal não tarda.
O exército israelita cerca e rende a capital inimiga. A vida retoma o seu curso normal. As aparências foram salvas, e a fealdade do crime, devidamente obliterada. Urias, para todos os efeitos, morreu como um herói em ação. O repugnante ofende o olhar. "Mas a conduta de Davi desagradou aos olhos do Senhor".
De início, nada ocorre. Quase um ano havia se passado sem que Davi houvesse demonstrado qualquer sinal de remorso ou contrição. Um dia, porém, tudo muda. O profeta Natã aparece para uma visita e relata ao rei um episódio recente sobre uma vila em que existiam dois homens, um rico e outro pobre.
O rico era dono de um farto rebanho de bois e carneiros. O pobre possuía uma única ovelha, que criava junto com os filhos, como se fosse membro da família. Mas, quando o homem rico recebeu um visitante de fora, ele mostrou o unha-de-fome que era. Em vez de matar um animal do seu rebanho, foi à casa do pobre e pegou a sua única ovelha para servi-la ao visitante.
Ao ouvir tamanha injustiça, o rei Davi, indignado, não se conteve: "O homem que fez isso merece a morte; ele pagará quatro vezes a ovelha por ter feito uma coisa dessas, sem revelar pena". O profeta Natã, então, replica: "Esse homem é você!"
É só a partir dessa revelação que a fúria e a espada divinas desabam sobre a casa de Davi, ceifando a vida de seu primeiro filho com Betsabéia e semeando a escalada do conflito na família real. Mas é aí também que a enormidade do crime por ele cometido atinge a sua consciência entorpecida com a força esmagadora de um raio.
O blecaute da culpa e a supressão espontânea da memória haviam devolvido a paz ao palácio subjetivo do rei. O ardil do profeta, porém, iluminou o ponto cego em sua consciência. O rei cai em si.
O profeta não acusa diretamente o rei. Ele aguça o senso de justiça de Davi com a parábola dos dois homens, para daí então girar o bisturi na mão do rei e forçá-lo a cortar na própria carne. Natã encurrala Davi diante de Davi. Ele atrai o monstro, atiça a fera, desprega sutilmente a máscara e ergue o espelho.
A injustiça que Davi não tinha dificuldade em descobrir no outro, a ponto de condená- lo com absurda severidade, ele não era capaz de ver em si, apesar da gigantesca desproporção entre a gravidade dos dois atos.
A visão repugnante do próprio crime refletido no espelho da consciência -o ardil do profeta- rompe o dique da memória e da culpa represadas. O cordão sanitário do esquecer auto-enganado arrebenta, e o passado se insurge. Davi desmascara Davi. O ponto cego enxergou.
Se alguma verdade da ética merece possuir o status e a universalidade da lei da gravidade na física, o preceito aristotélico que encabeça este artigo (adaptado da "Política", 1280a15) é forte candidato ao posto. O grau de isenção dos nossos juízos morais varia na proporção inversa da intensidade das nossas paixões e do nosso interesse pessoal no caso.



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