São Paulo, quinta, 3 de setembro de 1998

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CRÍTICA

"Comédia" une lirismo e escatologia em Portugal

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

"A Comédia de Deus" é imperdível. Em quase três horas de duração, o diretor João César Monteiro mistura humor, lirismo, belas imagens, ironia, escatologia -enfim, pães para muitos gostos.
Disse um crítico quando o filme passou em Paris dois anos atrás: "Há uma união de Buster Keaton com Buñuel".
Acrescentem-se uma dose de mineirice mais algo da melancolia lusitana, e o resultado é mesmo de não se perder.
João de Deus (interpretado pelo próprio diretor, sob pseudônimo de Max Monteiro) trabalha como gerente de uma sorveteria lisboeta, "Paraíso do Gelado", da qual também cria os sabores e "perfumes".

Livro dos Pensamentos
Obcecado pela higiene e pelo bom atendimento, da altura de seus mais de 50 anos de idade, ele se compraz sobretudo com bolinar e levar para casa clientes ou balconistas do estabelecimento -todas jovenzinhas e das quais coleciona pêlos pubianos cuidadosamente classificados num álbum chamado "Livro dos Pensamentos".
Trata-se de um "ninfomaníaco" refinado, ultracharmoso e atraente, a despeito da magreza cadavérica, das olheiras permanentes e de um inacreditável nariz adunco.
Tudo corre "normalmente" até que dois fatos decisivos o atingem: a possível fusão da sorveteria com uma empresa francesa e, pior, a descoberta, por um açougueiro (atenção para o detalhe!), de que ele, João de Deus, abusara de sua filha de 15 anos.
O personagem criado por Monteiro -diretor conhecido em Portugal pela qualidade e pelo lado escandaloso de seus filmes- é de uma ambiguidade espetacular: lânguido, elegante, sereno, lascivo, poético, cínico, sedutor, ingênuo, sensível. Dobra-nos com sua melancolia e sua paixão sinceras, apesar das atitudes moralmente questionáveis que adota.
Tem sempre umas tiradinhas. Por exemplo: "Micróbio a mais, micróbio a menos, da terra, de verdade, ninguém nos livra".
Ao ensinar uma novata a servir sorvete de casquinha, ele resume, professoral: "Tudo está na perfeita adstringência entre a bola e a borda da bolacha, para que esta não se esborrache". Seu sonho: "Realizar o perfume que concentre todos os perfumes".
Pelo menos quatro cenas do filme são antológicas: a menina Rosarinho "nadando" no ar, com João regendo seus movimentos; Joaninha na banheira cheia de leite; ela depois sentada sobre dúzias de ovos crus; e o encontro do protagonista com o açougueiro irado. Cito-as, apenas, sem detalhes, para não tirar a graça.
Tudo isso com uma trilha sonora de canções líricas ou obras sinfônicas que, por sua sobriedade, acentua a ironia e os paradoxos do filme. Da mesma forma, a iluminação claro-escuro e o cenário simples, como singelos panos de fundo, permitem ao personagem destacar-se ainda mais.
De quebra, aulas sobre a história do "império do ice-cream", como diz João de Deus.
Dica final: o filme obviamente é em português, mas o sotaque lisboeta dos atores é bem "carregado". Quem não está habituado deve preparar uma reserva especial de atenção.


Filme: "A Comédia de Deus"
Diretor: João César Monteiro
Produção: Portugal, 1995
Com: João César Monteiro, Manuela de Freitas, Cláudia Teixeira, Max Monteiro e Raquel Ascenção




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