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CRÍTICA
"Comédia" une lirismo e escatologia em Portugal
BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação
"A Comédia de Deus" é imperdível. Em quase três horas de duração, o diretor João César Monteiro
mistura humor, lirismo, belas imagens, ironia, escatologia -enfim,
pães para muitos gostos.
Disse um crítico quando o filme
passou em Paris dois anos atrás:
"Há uma união de Buster Keaton
com Buñuel".
Acrescentem-se uma dose de mineirice mais algo da melancolia lusitana, e o resultado é mesmo de
não se perder.
João de Deus (interpretado pelo
próprio diretor, sob pseudônimo
de Max Monteiro) trabalha como
gerente de uma sorveteria lisboeta,
"Paraíso do Gelado", da qual também cria os sabores e "perfumes".
Livro dos Pensamentos
Obcecado pela higiene e pelo
bom atendimento, da altura de
seus mais de 50 anos de idade, ele
se compraz sobretudo com bolinar
e levar para casa clientes ou balconistas do estabelecimento -todas
jovenzinhas e das quais coleciona
pêlos pubianos cuidadosamente
classificados num álbum chamado
"Livro dos Pensamentos".
Trata-se de um "ninfomaníaco"
refinado, ultracharmoso e atraente, a despeito da magreza cadavérica, das olheiras permanentes e de
um inacreditável nariz adunco.
Tudo corre "normalmente" até
que dois fatos decisivos o atingem:
a possível fusão da sorveteria com
uma empresa francesa e, pior, a
descoberta, por um açougueiro
(atenção para o detalhe!), de que
ele, João de Deus, abusara de sua
filha de 15 anos.
O personagem criado por Monteiro -diretor conhecido em Portugal pela qualidade e pelo lado escandaloso de seus filmes- é de
uma ambiguidade espetacular:
lânguido, elegante, sereno, lascivo,
poético, cínico, sedutor, ingênuo,
sensível. Dobra-nos com sua melancolia e sua paixão sinceras, apesar das atitudes moralmente questionáveis que adota.
Tem sempre umas tiradinhas.
Por exemplo: "Micróbio a mais,
micróbio a menos, da terra, de verdade, ninguém nos livra".
Ao ensinar uma novata a servir
sorvete de casquinha, ele resume,
professoral: "Tudo está na perfeita
adstringência entre a bola e a borda da bolacha, para que esta não se
esborrache". Seu sonho: "Realizar
o perfume que concentre todos os
perfumes".
Pelo menos quatro cenas do filme são antológicas: a menina Rosarinho "nadando" no ar, com
João regendo seus movimentos;
Joaninha na banheira cheia de leite; ela depois sentada sobre dúzias
de ovos crus; e o encontro do protagonista com o açougueiro irado.
Cito-as, apenas, sem detalhes, para
não tirar a graça.
Tudo isso com uma trilha sonora
de canções líricas ou obras sinfônicas que, por sua sobriedade, acentua a ironia e os paradoxos do filme. Da mesma forma, a iluminação claro-escuro e o cenário simples, como singelos panos de fundo, permitem ao personagem destacar-se ainda mais.
De quebra, aulas sobre a história
do "império do ice-cream", como
diz João de Deus.
Dica final: o filme obviamente é
em português, mas o sotaque lisboeta dos atores é bem "carregado". Quem não está habituado deve preparar uma reserva especial
de atenção.
Filme: "A Comédia de Deus"
Diretor: João César Monteiro
Produção: Portugal, 1995
Com: João César Monteiro, Manuela de
Freitas, Cláudia Teixeira, Max Monteiro e
Raquel Ascenção
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