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LITERATURA
Escritor italiano lança "Réquiem" no Brasil, sobre um encontro de sonhos entre o autor e o poeta português
Pessoa pode não ter existido, diz Tabucchi
CYNARA MENEZES
DA REPORTAGEM LOCAL
O escritor italiano Antonio Tabucchi, 58, ficou conhecido por
sua ligação quase sobrenatural
com o poeta português Fernando
Pessoa, de quem chegou a "psicografar" o delírio final no livro "Os
Três Últimos Dias de Fernando
Pessoa" (1994).
Dois anos antes, o apreço de Tabucchi pelas letras em português
já se manifestara com um livrinho
escrito na língua de Camões e Machado, considerado uma de suas
obras-primas e que só no final do
mês chega até nós: "Réquiem"
marca outro encontro de sonhos
entre Tabucchi e o poeta, em uma
Lisboa real povoada por seres
imaginários -segundo o italiano, talvez até mesmo Pessoa.
Apesar de apaixonado pela capital portuguesa, o escritor vive
atualmente entre Paris e sua Itália
natal, com temporadas numa casa de campo da Toscana que pertenceu ao avô, de onde falou para
a Folha por telefone (em português de Portugal, claro).
Folha - "Réquiem" chega ao Brasil com nove anos de atraso...
Antonio Tabucchi - [Rindo" Réquiem normalmente é para os defuntos. E, para eles, nunca é tarde.
Folha - No livro, o protagonista é
advertido por uma cigana de que
não pode viver entre o sonho e a
realidade. Mas sua obra continuaria a seguir este rumo. Por quê?
Tabucchi - A literatura é um estado intermediário; nunca é realidade, nunca é sonho. Mas no "Réquiem" não era eu que estava vivendo essa situação, o personagem não é necessariamente o autor. No fundo, se há um protagonista facilmente identificável e
que corresponde à realidade, é
Lisboa. As outras personagens todas são criaturas que vagueiam
pelo ar. São fictícios, nada existiu.
Folha - Só Fernando Pessoa.
Tabucchi - Não, talvez também
ele não tenha existido. Aliás, pôs
em dúvida sua existência criando
tantos heterônimos, nos deu a entender que talvez ele próprio não
existisse. Onde está, qual deles é o
verdadeiro Pessoa? Não se sabe.
Folha - Continuou a escrever em
português depois de "Réquiem"?
Tabucchi - Não. Há dois anos,
voltei aos mesmos lugares onde
"Réquiem" foi escrito, em Paris,
para meditar sobre o motivo pelo
qual o livro saiu em português.
Escrevi uma nota procurando as
razões e claro que não encontrei
nenhuma, mas conto o nascimento: cheguei uma noite a Paris e sonhei com meu pai, que já tinha
morrido havia muitos anos, me
falando em português, uma língua que ele não conhecia. No dia
seguinte, sentei-me num café,
eram 11h da manhã e, naquele
momento, aquele sonho do qual
tinha me esquecido quando acordei voltou. Tinha um pequeno caderno no meu bolso, sempre ando com um caderninho e uma caneta -continuo a escrever a mão,
não uso computador- e pronto,
comecei a escrever. Não pensei
que escrevia em português, era
natural para mim reproduzir de
memória o sonho. Só quando regressei ao hotel, à noite, me apercebi. Estupidamente, depois do
jantar, comecei a traduzir o que tinha escrito naquela manhã para a
minha língua materna. Não pode
imaginar o sofrimento que tive.
Estava a fazer uma coisa contra a
natureza, estava a obrigar uma
criatura que tinha nascido numa
língua a exprimir-se em outra.
Depois, amarfanhava as páginas e
deitava no cesto de papéis. Até
que disse: agora chega, é inútil. Fiquei quase um mês em Paris e todos os dias trabalhava naquela
história, que nascia sozinha, me
acompanhava. Entrei no sonho e
comecei a dirigi-lo.
Folha - Foi curioso ver o livro traduzido ao italiano?
Tabucchi - Quando chegou o
momento de publicá-lo no meu
país, voltou o problema. Com o livro, tinha sido capaz de atravessar
o rio com o meu barquinho e chegar à outra margem, mas não seria capaz de fazer a viagem de regresso. Então perguntei a um
amigo que conhece bem português [Sergio Vecchio", mas sobretudo que conhece a mim, se poderia fazer a tradução, e ele fez.
Folha - Ficou bom?
Tabucchi - Cada livro, em outra
língua, também é outro. É como
uma pessoa que muda de vestido.
Me dou conta quando leio um
poema de Drummond em italiano que eu mesmo traduzi. Sei que
está lá dentro Drummond, mas
mudou um bocadinho.
Folha - Eu não poderia terminar
esta entrevista sem perguntar para
o senhor sobre os atentados nos
EUA. O mundo está em convulsão?
Tabucchi - Dizer que o mundo
endoideceu agora seria esquecer
que foi sempre muito problemático. Claro que vivi aquele atentado
terrorista com muita dor, muita
preocupação e uma grande náusea, sobretudo porque são quase
as vítimas de uma guerra e aconteceu em um quarto de hora. Portanto é um daqueles acontecimentos que perturbam as consciências do mundo inteiro. Mas
os terroristas não são todo o mundo islâmico, há um mundo islâmico moderado, culto, que não
tem nada a ver com esses extremistas. Uma guerra de culturas e
religiões seria um desastre neste
novo milênio. Antigamente, as
guerras de religião e de cultura se
faziam com a espada. Agora fazem-se com os mísseis e as bombas atômicas. Mais do que perigoso, seria definitivo.
Folha - Como o sr. viu a declaração do primeiro-ministro italiano,
Silvio Berlusconi, sobre uma suposta "superioridade" dos ocidentais
sobre os orientais?
Tabucchi - Não poderia dizer que
estou orgulhoso de que um primeiro-ministro diga essas asneiras na televisão pública. Sobretudo se ele tivesse pensado um instantinho que a civilização ocidental em um espaço de poucos séculos conseguiu criar a Inquisição, a
escravidão, o Holocausto. Acho
que as pessoas deveriam estudar
um bocadinho antes de chegarem
a primeiro-ministro.
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