São Paulo, quarta-feira, 03 de outubro de 2001

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MARCELO COELHO

Frears faz um "quase-documentário" sobre a Inglaterra dos anos 30

Hoje não falo de muçulmanos nem de fanatismo islâmico; nos últimos dias, andei meio assustado foi com o catolicismo. Fui ver o filme de Stephen Frears, "Liam", claustrofóbico como poucos. O retrato que o cineasta faz do catolicismo é de impressionar.
E eu tinha acabado de ler o livro "Morte na Família" (ed. Germinal), de James Agee, em que um tal padre Jackson é especialista em aterrorizar criancinhas. O livro tem um tom autobiográfico e conta como o protagonista, um menino de cinco ou seis anos, sofre o drama da morte de um familiar num acidente.
O menino e a irmã menor estão em casa, e o padre Jackson vem fazer uma visitinha. Rufus (é o nome do garoto) está sentado na sala e fica reparando no rosto e nas roupas do sacerdote. Este observa: "As crianças não devem encarar os mais velhos". Rufus e sua irmã não entendem a reprimenda. "Hum?, fizeram ambos." O padre implica: "Digam: desculpe-me, padre".
A conversa continua. "Nunca é cedo demais para aprendermos a ser senhorinhas e cavalheiros, não é?" Rufus responde: "Não sei". Jackson: "Considero essa resposta inteiramente incivilizada a uma pergunta civilizada". Rufus não sabe o que quer dizer "incivilizado". Mas o padre persiste: "Você concorda? Diga: "Sim, padre'". Rufus responde: "Sim, Padre". Jackson conclui: "Nesse caso, você está sabendo de sua incivilidade. Ela é deliberada e proposital".
Com o pequeno Liam, do filme de Stephen Frears, tudo é ainda pior. Liam tem uns sete anos, vai fazer a primeira comunhão; as aulas de catecismo são horripilantes -o fogo do inferno etc. Antes da comunhão, terá de confessar-se. O problema é que Liam gagueja muitíssimo quando fica nervoso. E há uma coisa que ele não sabe se é pecado ou não: viu sua mãe tomando banho.
Ele simplesmente não consegue contar isso ao padre. Faz uma confissão incompleta. Fica apavorado: terá de engolir a hóstia sabendo-se impuro.
Problema mais grave é o de sua irmã mocinha, que trabalha como empregada doméstica na casa de uma família rica. A patroa tem um amante. A menina naturalmente ajuda a patroa a esconder isso do marido. Mas se sente culpada. Vai confessar ao padre. O padre só vê uma solução para essa imoralidade.
Não vou contar qual é, porque já contei muita coisa desse filme. E, mesmo que quisesse contar, não poderia, porque nesse momento saí da sala. Não dava mais para aguentar.
A história se passa na Inglaterra, nos anos 30. Desemprego, humilhação, arbítrio dos ricos, fome, medo do inferno, repressão moral, o judeu da casa de penhores, a imbecilidade católica... Tudo levando de forma bem compreensível a que o pai de Liam simpatize com o fascismo.
Não sei se o filme "melhora" depois. O que o torna difícil de assistir é que toda a realidade apresentada vem na forma de um "quase-documentário", sem que se possa ver muita ambiguidade nos personagens: são mais objetos da brutalidade social do que pessoas. E, embora tenha um forte poder de denúncia, o filme não deixa também de ter aquele típico sadismo dickensiano, sempre disposto a massacrar mais as pessoas de quem se compadece.
Claro que o livro e o filme tratam do que acontecia nas primeiras décadas do século 20 e falam de um catolicismo especial, o vigente nos países anglo-saxões. Mas me senti como um muçulmano moderado talvez se sinta.
Fui batizado e vivo num país católico. Como! Haverá de dizer um protestante. As aulas de catecismo de vocês são desse jeito? Os padres dizem essas barbaridades? Curiosamente, se eu for me lembrar das aulas de catecismo que tive (lembro-me pouquíssimo, aliás), vou constatar que não havia muita diferença de conteúdo entre o que me contaram e o que contaram ao pobre Liam.
O jeito de contar não era tão horripilante, mas sem dúvida a idéia de passar a eternidade no inferno surgia como uma ameaça. A idéia de "eternidade" traduzia-se, aliás, na mesma história que contam para Liam. Imagine uma praia, com todos os grãos de areia, e alguém que tira um grãozinho por ano... etc.
Muita coisa no catolicismo de "Liam" é reconhecível por mim; mas felizmente não tenho nenhum exemplo recente de ferocidade e fanatismo sacerdotal a relatar. A Itália de Fellini, em "Giulietta dos Espíritos", mostra aspectos bem terrificantes do imaginário católico. Mas, de alguma forma, há a consciência de que aquilo não é para valer, que se confunde mais com a propensão infantil ao medo do que sobre um cotidiano imerso em trevas e superstição. Não falo, é claro, do século 16, mas do que temos atualmente.
Um outro comentário. A todo momento estamos tentando entender a mente oriental, o espírito islâmico, o funcionamento do cérebro de Bin Laden. Mas o fato é que nem mesmo no nosso querido Ocidente conseguimos explicar muito bem como tanta gente aderiu ao nazismo...
"Liam", nesse ponto, ajuda bastante a ver de que modo o preconceito e o fascismo podem surgir como resposta a uma situação de constante vergonha pessoal e de miséria. O que não desculpa o fascismo de modo nenhum; mas, se não reconhecermos a barbárie como uma possibilidade inscrita dentro de nossa própria condição humana, isto é, se acharmos que a barbárie é só característica "dos outros", não haverá muito mérito em pertencermos (supostamente) à parte civilizada da população.



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