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MARCELO COELHO
Frears faz um "quase-documentário" sobre a Inglaterra dos anos 30
Hoje não falo de muçulmanos nem de fanatismo islâmico; nos últimos dias, andei
meio assustado foi com o catolicismo. Fui ver o filme de Stephen
Frears, "Liam", claustrofóbico como poucos. O retrato que o cineasta faz do catolicismo é de impressionar.
E eu tinha acabado de ler o livro
"Morte na Família" (ed. Germinal), de James Agee, em que um
tal padre Jackson é especialista
em aterrorizar criancinhas. O livro tem um tom autobiográfico e
conta como o protagonista, um
menino de cinco ou seis anos, sofre o drama da morte de um familiar num acidente.
O menino e a irmã menor estão
em casa, e o padre Jackson vem
fazer uma visitinha. Rufus (é o
nome do garoto) está sentado na
sala e fica reparando no rosto e
nas roupas do sacerdote. Este observa: "As crianças não devem
encarar os mais velhos". Rufus e
sua irmã não entendem a reprimenda. "Hum?, fizeram ambos."
O padre implica: "Digam: desculpe-me, padre".
A conversa continua. "Nunca é
cedo demais para aprendermos a
ser senhorinhas e cavalheiros,
não é?" Rufus responde: "Não
sei". Jackson: "Considero essa resposta inteiramente incivilizada a
uma pergunta civilizada". Rufus
não sabe o que quer dizer "incivilizado". Mas o padre persiste:
"Você concorda? Diga: "Sim, padre'". Rufus responde: "Sim, Padre". Jackson conclui: "Nesse caso, você está sabendo de sua incivilidade. Ela é deliberada e proposital".
Com o pequeno Liam, do filme
de Stephen Frears, tudo é ainda
pior. Liam tem uns sete anos, vai
fazer a primeira comunhão; as
aulas de catecismo são horripilantes -o fogo do inferno etc.
Antes da comunhão, terá de confessar-se. O problema é que Liam
gagueja muitíssimo quando fica
nervoso. E há uma coisa que ele
não sabe se é pecado ou não: viu
sua mãe tomando banho.
Ele simplesmente não consegue
contar isso ao padre. Faz uma
confissão incompleta. Fica apavorado: terá de engolir a hóstia sabendo-se impuro.
Problema mais grave é o de sua
irmã mocinha, que trabalha como empregada doméstica na casa
de uma família rica. A patroa tem
um amante. A menina naturalmente ajuda a patroa a esconder
isso do marido. Mas se sente culpada. Vai confessar ao padre. O
padre só vê uma solução para essa imoralidade.
Não vou contar qual é, porque
já contei muita coisa desse filme.
E, mesmo que quisesse contar,
não poderia, porque nesse momento saí da sala. Não dava mais
para aguentar.
A história se passa na Inglaterra, nos anos 30. Desemprego, humilhação, arbítrio dos ricos, fome,
medo do inferno, repressão moral, o judeu da casa de penhores, a
imbecilidade católica... Tudo levando de forma bem compreensível a que o pai de Liam simpatize
com o fascismo.
Não sei se o filme "melhora" depois. O que o torna difícil de assistir é que toda a realidade apresentada vem na forma de um
"quase-documentário", sem que
se possa ver muita ambiguidade
nos personagens: são mais objetos
da brutalidade social do que pessoas. E, embora tenha um forte
poder de denúncia, o filme não
deixa também de ter aquele típico
sadismo dickensiano, sempre disposto a massacrar mais as pessoas
de quem se compadece.
Claro que o livro e o filme tratam do que acontecia nas primeiras décadas do século 20 e falam
de um catolicismo especial, o vigente nos países anglo-saxões.
Mas me senti como um muçulmano moderado talvez se sinta.
Fui batizado e vivo num país
católico. Como! Haverá de dizer
um protestante. As aulas de catecismo de vocês são desse jeito? Os
padres dizem essas barbaridades?
Curiosamente, se eu for me lembrar das aulas de catecismo que
tive (lembro-me pouquíssimo,
aliás), vou constatar que não havia muita diferença de conteúdo
entre o que me contaram e o que
contaram ao pobre Liam.
O jeito de contar não era tão
horripilante, mas sem dúvida a
idéia de passar a eternidade no
inferno surgia como uma ameaça. A idéia de "eternidade" traduzia-se, aliás, na mesma história
que contam para Liam. Imagine
uma praia, com todos os grãos de
areia, e alguém que tira um grãozinho por ano... etc.
Muita coisa no catolicismo de
"Liam" é reconhecível por mim;
mas felizmente não tenho nenhum exemplo recente de ferocidade e fanatismo sacerdotal a relatar. A Itália de Fellini, em "Giulietta dos Espíritos", mostra aspectos bem terrificantes do imaginário católico. Mas, de alguma
forma, há a consciência de que
aquilo não é para valer, que se
confunde mais com a propensão
infantil ao medo do que sobre um
cotidiano imerso em trevas e superstição. Não falo, é claro, do século 16, mas do que temos atualmente.
Um outro comentário. A todo
momento estamos tentando entender a mente oriental, o espírito
islâmico, o funcionamento do cérebro de Bin Laden. Mas o fato é
que nem mesmo no nosso querido
Ocidente conseguimos explicar
muito bem como tanta gente aderiu ao nazismo...
"Liam", nesse ponto, ajuda bastante a ver de que modo o preconceito e o fascismo podem surgir
como resposta a uma situação de
constante vergonha pessoal e de
miséria. O que não desculpa o fascismo de modo nenhum; mas, se
não reconhecermos a barbárie como uma possibilidade inscrita
dentro de nossa própria condição
humana, isto é, se acharmos que
a barbárie é só característica "dos
outros", não haverá muito mérito
em pertencermos (supostamente)
à parte civilizada da população.
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