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São Paulo, sexta-feira, 03 de outubro de 2003

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CINEMA/ESTRÉIAS

"EU SOU UM GRANDE MENTIROSO"

Cineasta é tema de documentário

Fellini elogia artifício e busca o verdadeiro no imaginário

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Fellini: Eu Sou um Grande Mentiroso" -mais vale não tomar esse título ao pé da letra. Federico Fellini não é um mentiroso na tradição de Orson Welles, em todo caso, essa que transfigura o falso em verdadeiro, que problematiza a mentira.
A frase é pronunciada pelo próprio Fellini ao longo da entrevista concedida a Damian Pettigrew, diretor do documentário. Mas ela chega quase que por acaso, impensada. Na real, Fellini queria dizer naquele instante que, para ele, não existe diferença entre real e imaginário na dimensão da memória. Eles se confundem. Ou seja, o passado, evocado com tanta frequência no chamado universo felliniano, não significa que as coisas tenham acontecido exatamente da maneira como os filmes as representam. Quem já viu algum trabalho de Fellini sabe bem disso -o que diminui bastante o impacto da afirmação.
Mais interessante talvez seja o fato de a memória, no autor italiano, ser onipresente e múltipla e ocupar passado, presente, futuro, de tal modo que o tempo deixa de fazer sentido -o que constitui uma bela explicação para o cinema não narrativo praticado por Fellini. Nesse nível, Fellini seria, talvez, próximo de Alain Resnais, com menos cultura e mais gênio.
Mas existe outro nível, e Fellini refere-se a ele diretamente, quando comenta a descoberta do "Rashomon" de Akira Kurosawa. O que chamou sua atenção foi justamente a capacidade de "fotografar o ar" que viu no filme japonês. Nesse momento, podemos perceber como é profunda a ligação de Fellini com as artes plásticas, a pintura em particular, que considera a inspiração principal de seu cinema. Eis aí outra boa explicação para não se interessar especialmente por tramas. O que o mobiliza são motivos.
O que o motiva são, em suma, as pinceladas que formam o filme, não a história. A história é uma espécie de mal necessário com o qual deve conviver para chegar ao quadro. Daí talvez Fellini ser um dos melhores enquadradores da história do cinema: onde põe a câmera, a beleza se manifesta.
Daí, talvez, também, a reação diferente de certos atores com seus métodos. Fellini os vê como marionetes. Por vezes não precisam nem mesmo de texto: declamam números, as falas são dubladas depois. Donald Sutherland odiou tal método, tanto quanto Marcello Mastroianni o aprovava.
Daí, igualmente, o encanto do trabalho de Fellini em estúdio, detalhado no possivelmente mais belo momento do filme, quando o cineasta discorre sobre o mar de "E la Nave Va", sobre a necessidade que sentia de um mar de plástico que, no entanto, devia ser percebido pelo espectador como o mar natural. Elogio notável do artifício, da necessidade de ir ao falso para buscar o verdadeiro.
E assim vai este "Fellini": certos momentos luminosos o tornam obrigatório.


Fellini: Eu Sou um Grande Mentiroso
Sono um Gran Bugiardo
   
Direção: Damian Pettigrew
Produção: Itália/França/Inglaterra, 2003
Com: Federico Fellini, Donald Sutherland, Roberto Benigni
Quando: a partir de hoje no Cinesesc



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