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São Paulo, sexta-feira, 03 de outubro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Histórias da savana verde

O gaúcho não é brasileiro nato: é brasileiro por escolha, por vontade e por luta. Não compreenderemos a personalidade humana e política de Getúlio Vargas sem antes retrocedermos à história do antigo Continente de São Pedro, esquecido e desprezado pelo Império e hostilizado pela incipiente República. Getúlio Vargas -e o que ele representou- consolidou a integração do gaúcho na comunidade brasileira. E, como acontece nesses casos, o elemento causador dessa integração tinha de ser, ao mesmo tempo, a tese e a antítese dos componentes dissociados. Para atingir a síntese, Getúlio tinha de ser simultaneamente o gaúcho e o antigaúcho.
Quando cheguei a São Borja, nos distantes anos 60, para escrever um livro sobre o antigo ditador, assustei-me com os homens armados que andavam pelas ruas da cidade. Afirmaram-me que "esse tempo está passando", mas ainda há muito gaúcho acintosa e desnecessariamente armado. No hotel, procurando o bar para um drinque, vi chegar um cidadão curiosamente parecido com o general Artur da Costa e Silva, que também era gaúcho, só que com as bochechas mais coradas. Vestia-se a caráter: bombachas, lenço ao pescoço, tudo. Inclusive dois baitas revólveres na cintura. Um ficou no coldre. O outro, ele fez um gesto para colocá-lo em cima da mesa, mas logo o recolocou no coldre. Até que deu de cara comigo, prudentemente espremido num canto do bar. Olhou-me -uma fisionomia nova é sempre uma ameaça em potencial- e, pelas dúvidas, tirou o revólver e o colocou em cima da mesa, o cano mais ou menos voltado em minha direção.
O uísque não era grande coisa e, com aquele arsenal apontado para mim, ficou pior. Levantei-me, fui à portaria, perguntei ao gerente se todo mundo andava assim. O homem me respondeu que andava quem queria, a maioria já "não era disso", mas havia recalcitrantes.
- E os jovens?
Bem, a juventude já não se reconhecia mais naqueles tipos estranhos que dia a dia diminuíam, presos mais a um exotismo folclórico que propriamente a uma necessidade. Pensavam os jovens em outras coisas, estudavam, ouviam rádio, compravam discos do momento, Roberto Carlos estava fazendo pela integração nacional muito mais do que o duque de Caxias, o Pacificador.
Mas a verdade é que o gaúcho, em seu primeiro estágio psíquico, é tímido. Tal como o mineiro. Apenas, no caso do mineiro, superada a timidez, ele parte para a astúcia. O gaúcho parte para a coragem, não raras vezes para a valentia.
Folheei no Foro de São Borja -buscava indícios da passagem do advogado Getúlio Vargas nos tribunais da região- muitos processos de crime. Eis um caso: o cidadão entrou no botequim e pediu uma bebida. Enquanto esperava, olhou em volta e deu com um sujeito no fundo da sala, escondido quase, nas sombras da última mesa. Veio a bebida e ele preparou-se para beber. Enchia o copo quando alguma coisa, talvez a semelhança do sujeito com algum conhecido, obrigou-o a olhar novamente para trás. Encararam-se por um tempo, até que o cidadão notou que havia se enganado. Voltou à bebida, acabou de encher o copo e levou-o à boca. Não chegou a molhar os lábios: dois tiros o abateram, pelas costas. O criminoso não fugiu. Disse à polícia e mais tarde ao juiz que o estranho o havia olhado duas vezes. Era uma razão.
Passei alguns dias olhando o chão, só levantava a cabeça em casos de extrema necessidade. Até que encontrei o motorista que me levou à Fazenda do Itu, duas horas de viagem em direção a Itaqui. O motorista me informou que não há habitante daquela zona, com mais de 40 anos de idade, que não tenha o seu caso de morte. O motorista era homem de seus 45 anos e isso me intranquilizou um pouco. Ia me apontando as cruzes fincadas no meio da estrada ou perdidas em plena coxilha. Dava nomes, datas e causas. Parecia um cicerone romano mostrando as ruínas do Fórum ou do Coliseu: "Aquela cruz ali foi o compadre Juvenal. O desgraçado roubou um cavalo do primo. Ali foi o Eudóxio, era parente de minha primeira mulher. Foi a faca". Mostrou-me um trecho de estrada: "Aqui o Gregório matou uns argentinos. Foi há muito tempo, eu era menino". Até que o dedo do motorista apontou o capão que fazia uma sombra verde-escura no horizonte: "Ali fui eu".
Não era agradável a idéia de fazer tão longa viagem em estradas desertas ao lado de um homem que já tinha matado outro. Fiz que não ouvi ou que não entendi, mas ele insistiu: "Foi o meu primeiro caso de morte. Um soldado que me desfeiteou. Passei-lhe a faca e fui absolvido".
- E o outro?
- Bom, no outro eu peguei dois anos.
- Foi dinheiro? Mulher?
- Nada disso. Não se mata ninguém por isso. Foi um agravo.
Agravo. A palavra mágica que provoca e redime o crime de morte. Em geral, não há ladrão naqueles pagos. Respeita-se a propriedade alheia, um ladrão de cavalo é pior do que um assassino de homens. E o crime dito passional também é raro, a honra do homem não está na mulher dele, está nele mesmo, em sua cara, é uma coisa quase física. Daí a importância, o malefício e a complexidade do agravo.

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