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CARLOS HEITOR CONY
Histórias da savana verde
O gaúcho não é brasileiro
nato: é brasileiro por escolha, por vontade e por luta. Não
compreenderemos a personalidade humana e política de Getúlio
Vargas sem antes retrocedermos
à história do antigo Continente
de São Pedro, esquecido e desprezado pelo Império e hostilizado
pela incipiente República. Getúlio
Vargas -e o que ele representou- consolidou a integração do
gaúcho na comunidade brasileira. E, como acontece nesses casos,
o elemento causador dessa integração tinha de ser, ao mesmo
tempo, a tese e a antítese dos componentes dissociados. Para atingir a síntese, Getúlio tinha de ser
simultaneamente o gaúcho e o
antigaúcho.
Quando cheguei a São Borja,
nos distantes anos 60, para escrever um livro sobre o antigo ditador, assustei-me com os homens
armados que andavam pelas ruas
da cidade. Afirmaram-me que
"esse tempo está passando", mas
ainda há muito gaúcho acintosa e
desnecessariamente armado. No
hotel, procurando o bar para um
drinque, vi chegar um cidadão
curiosamente parecido com o general Artur da Costa e Silva, que
também era gaúcho, só que com
as bochechas mais coradas. Vestia-se a caráter: bombachas, lenço
ao pescoço, tudo. Inclusive dois
baitas revólveres na cintura. Um
ficou no coldre. O outro, ele fez
um gesto para colocá-lo em cima
da mesa, mas logo o recolocou no
coldre. Até que deu de cara comigo, prudentemente espremido
num canto do bar. Olhou-me
-uma fisionomia nova é sempre
uma ameaça em potencial- e,
pelas dúvidas, tirou o revólver e o
colocou em cima da mesa, o cano
mais ou menos voltado em minha
direção.
O uísque não era grande coisa e,
com aquele arsenal apontado para mim, ficou pior. Levantei-me,
fui à portaria, perguntei ao gerente se todo mundo andava assim.
O homem me respondeu que andava quem queria, a maioria já
"não era disso", mas havia recalcitrantes.
- E os jovens?
Bem, a juventude já não se reconhecia mais naqueles tipos estranhos que dia a dia diminuíam,
presos mais a um exotismo folclórico que propriamente a uma necessidade. Pensavam os jovens em
outras coisas, estudavam, ouviam
rádio, compravam discos do momento, Roberto Carlos estava fazendo pela integração nacional
muito mais do que o duque de
Caxias, o Pacificador.
Mas a verdade é que o gaúcho,
em seu primeiro estágio psíquico,
é tímido. Tal como o mineiro.
Apenas, no caso do mineiro, superada a timidez, ele parte para a
astúcia. O gaúcho parte para a
coragem, não raras vezes para a
valentia.
Folheei no Foro de São Borja
-buscava indícios da passagem
do advogado Getúlio Vargas nos
tribunais da região- muitos processos de crime. Eis um caso: o cidadão entrou no botequim e pediu uma bebida. Enquanto esperava, olhou em volta e deu com
um sujeito no fundo da sala, escondido quase, nas sombras da
última mesa. Veio a bebida e ele
preparou-se para beber. Enchia o
copo quando alguma coisa, talvez
a semelhança do sujeito com algum conhecido, obrigou-o a olhar
novamente para trás. Encararam-se por um tempo, até que o
cidadão notou que havia se enganado. Voltou à bebida, acabou de
encher o copo e levou-o à boca.
Não chegou a molhar os lábios:
dois tiros o abateram, pelas costas. O criminoso não fugiu. Disse
à polícia e mais tarde ao juiz que
o estranho o havia olhado duas
vezes. Era uma razão.
Passei alguns dias olhando o
chão, só levantava a cabeça em
casos de extrema necessidade. Até
que encontrei o motorista que me
levou à Fazenda do Itu, duas horas de viagem em direção a Itaqui. O motorista me informou
que não há habitante daquela zona, com mais de 40 anos de idade,
que não tenha o seu caso de morte. O motorista era homem de
seus 45 anos e isso me intranquilizou um pouco. Ia me apontando
as cruzes fincadas no meio da estrada ou perdidas em plena coxilha. Dava nomes, datas e causas.
Parecia um cicerone romano
mostrando as ruínas do Fórum
ou do Coliseu: "Aquela cruz ali foi
o compadre Juvenal. O desgraçado roubou um cavalo do primo.
Ali foi o Eudóxio, era parente de
minha primeira mulher. Foi a faca". Mostrou-me um trecho de estrada: "Aqui o Gregório matou
uns argentinos. Foi há muito tempo, eu era menino". Até que o dedo do motorista apontou o capão
que fazia uma sombra verde-escura no horizonte: "Ali fui eu".
Não era agradável a idéia de fazer tão longa viagem em estradas
desertas ao lado de um homem
que já tinha matado outro. Fiz
que não ouvi ou que não entendi,
mas ele insistiu: "Foi o meu primeiro caso de morte. Um soldado
que me desfeiteou. Passei-lhe a faca e fui absolvido".
- E o outro?
- Bom, no outro eu peguei dois
anos.
- Foi dinheiro? Mulher?
- Nada disso. Não se mata
ninguém por isso. Foi um agravo.
Agravo. A palavra mágica que
provoca e redime o crime de morte. Em geral, não há ladrão naqueles pagos. Respeita-se a propriedade alheia, um ladrão de cavalo é pior do que um assassino
de homens. E o crime dito passional também é raro, a honra do
homem não está na mulher dele,
está nele mesmo, em sua cara, é
uma coisa quase física. Daí a importância, o malefício e a complexidade do agravo.
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