|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DANÇA
Evangelho segundo Angelin Prejlocaj
INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA
O s títulos são cristãos
-"Annonciation" (Anunciação) e "Mc 14/22" (referência
ao Evangelho segundo são Marcos, 14, versículo 22)-, mas o
cristianismo praticado pelo Ballet
Preljocaj sugere quase uma outra
religião, marcada por intensidades eróticas e ambivalências políticas e sociais.
Apresentado na última quarta-feira, o espetáculo fez parte da
Mostra Sesc de Dança, grandiosos
dez dias de epifanias e revelações
(e desastres, também, mas até esses, no contexto, não deixam de
ser interessantes).
Inspirada na iconografia renascentista, "Annonciation" é mesmo uma sequência de quadros, a
começar pela imagem de Maria,
sentada, iluminada pela luz do Espírito (spot no alto à direita), enquanto seu anjo não vem (embaixo à esquerda). O chão é marcado
por um retângulo vermelho sobre
o preto do linóleo, recortado em
um das esquinas por um banco.
Gabriel, no caso, é uma Gabriela
(se é que anjo tem sexo); Mãe e
Anjo fazem um duo vigoroso,
com movimentos por vezes fluidos, por vezes angulares, característicos do coreógrafo Angelin
Preljocaj.
A narrativa não economiza símbolos, com direito até à pomba.
Um beijo sela a imaculada concepção; Maria retorna ao banco,
repete os primeiros gestos. Como
se tudo tivesse tido lugar fora do
tempo, como se o tempo tivesse
parado e reiniciasse agora seu
curso.
A forma é eterna, como as imagens; e a coreografia tem a ambição explícita de revitalizar, tornar
vivo de novo -um sentido talvez
difícil de ser renovado fora do
contexto da crença.
O contexto é a chave, também,
para que se possa começar a entender "Mc 14/22". "Estando eles
comendo, tomou Jesus o pão e,
tendo dado graças, partiu-o e
deu-lhes, dizendo: "Tomai; este é
o meu corpo"." Multiplicado por
dez, ou por 11, conforme a cena
(enigma: não eram 12 apóstolos?),
este corpo masculino responde à
Anunciação feminina. Mas a natureza violenta desse evangelho
está deslocada, alusivamente, para um território que não é só da
Galiléia, mas parece hoje a Palestina ou Candahar. (Outro enigma:
o bailarino parrudo, em franco
contraste com os demais -homogeneamente bons.)
A imagem de um bailarino que
vai sendo "enfaixado" de fita colante, mas insiste em repetir sua
sequência de movimentos, até a
paralisia final (quando é retirado
do palco como um pedaço de carne); um bailarino cantor, alvo de
calmas agressões de dois outros,
com estranhas consequências vocais; ou a sucessão de corpos se jogando de uma plataforma, para o
mar de braços embaixo; são só
três exemplos das imagens fortes
da coreografia que só vão ficando
mais fortes na memória.
Uma grande mesa (divisível)
serve de coadjuvante. Em torno,
embaixo ou sobre ela, os duos e
trios compõem seus passos; compõem, também, no centro de tudo, uma sequência de "tableaux",
quadros estáticos, imitando os
óleos maneiristas de Caravaggio
(ou o Caravaggio cinematográfico
de Derek Jarman).
Estranha sensação, depois de
tudo. O espírito dos tempos, nesta
cidade, sopra decididamente na
direção contrária a um balé tão
simbólico. O corpo agora tem de
"pensar", não "contar histórias".
Mas é preciso reconhecer o considerável arrojo e o humanismo revigorado de Preljocaj, ao descobrir -nos Evangelhos!- uma
forma de resistir aos anti-Evangelhos do nosso tempo.
Avaliação:
![](http://www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
Texto Anterior: Mônica Bergamo: Estroboscópica Próximo Texto: Da rua - Fernando Bonassi: Os diplomatas Índice
|