São Paulo, sábado, 03 de novembro de 2001

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DANÇA

Evangelho segundo Angelin Prejlocaj

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

O s títulos são cristãos -"Annonciation" (Anunciação) e "Mc 14/22" (referência ao Evangelho segundo são Marcos, 14, versículo 22)-, mas o cristianismo praticado pelo Ballet Preljocaj sugere quase uma outra religião, marcada por intensidades eróticas e ambivalências políticas e sociais.
Apresentado na última quarta-feira, o espetáculo fez parte da Mostra Sesc de Dança, grandiosos dez dias de epifanias e revelações (e desastres, também, mas até esses, no contexto, não deixam de ser interessantes).
Inspirada na iconografia renascentista, "Annonciation" é mesmo uma sequência de quadros, a começar pela imagem de Maria, sentada, iluminada pela luz do Espírito (spot no alto à direita), enquanto seu anjo não vem (embaixo à esquerda). O chão é marcado por um retângulo vermelho sobre o preto do linóleo, recortado em um das esquinas por um banco. Gabriel, no caso, é uma Gabriela (se é que anjo tem sexo); Mãe e Anjo fazem um duo vigoroso, com movimentos por vezes fluidos, por vezes angulares, característicos do coreógrafo Angelin Preljocaj.
A narrativa não economiza símbolos, com direito até à pomba. Um beijo sela a imaculada concepção; Maria retorna ao banco, repete os primeiros gestos. Como se tudo tivesse tido lugar fora do tempo, como se o tempo tivesse parado e reiniciasse agora seu curso.
A forma é eterna, como as imagens; e a coreografia tem a ambição explícita de revitalizar, tornar vivo de novo -um sentido talvez difícil de ser renovado fora do contexto da crença.
O contexto é a chave, também, para que se possa começar a entender "Mc 14/22". "Estando eles comendo, tomou Jesus o pão e, tendo dado graças, partiu-o e deu-lhes, dizendo: "Tomai; este é o meu corpo"." Multiplicado por dez, ou por 11, conforme a cena (enigma: não eram 12 apóstolos?), este corpo masculino responde à Anunciação feminina. Mas a natureza violenta desse evangelho está deslocada, alusivamente, para um território que não é só da Galiléia, mas parece hoje a Palestina ou Candahar. (Outro enigma: o bailarino parrudo, em franco contraste com os demais -homogeneamente bons.)
A imagem de um bailarino que vai sendo "enfaixado" de fita colante, mas insiste em repetir sua sequência de movimentos, até a paralisia final (quando é retirado do palco como um pedaço de carne); um bailarino cantor, alvo de calmas agressões de dois outros, com estranhas consequências vocais; ou a sucessão de corpos se jogando de uma plataforma, para o mar de braços embaixo; são só três exemplos das imagens fortes da coreografia que só vão ficando mais fortes na memória.
Uma grande mesa (divisível) serve de coadjuvante. Em torno, embaixo ou sobre ela, os duos e trios compõem seus passos; compõem, também, no centro de tudo, uma sequência de "tableaux", quadros estáticos, imitando os óleos maneiristas de Caravaggio (ou o Caravaggio cinematográfico de Derek Jarman).
Estranha sensação, depois de tudo. O espírito dos tempos, nesta cidade, sopra decididamente na direção contrária a um balé tão simbólico. O corpo agora tem de "pensar", não "contar histórias". Mas é preciso reconhecer o considerável arrojo e o humanismo revigorado de Preljocaj, ao descobrir -nos Evangelhos!- uma forma de resistir aos anti-Evangelhos do nosso tempo.


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