|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS/LANÇAMENTOS
"O PÁSSARO RARO"
Coletânea de 86, que reúne contos com temática filosófica, marca a estréia de Gaarder na ficção
Obra é espelho sem as deformações de nosso miserável narcisismo
CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN
A associação do nome do
escritor norueguês Jostein
Gaarder com literatura dirigida
para o público infanto-juvenil parece quase automática desde o espetacular sucesso global alcançado por seu "O Mundo de Sofia".
Antes de publicar seu best seller
filosófico, Gaarder dedicara parte
de sua produção literária especificamente para esse público.
O mesmo não se pode dizer de
"O Pássaro Raro", sua estréia na
ficção -no ano de 1986- que
reúne dez contos cuja temática filosófica talvez seja demasiado difícil para o público que se deliciou
com as aventuras de sua Sofia pelas veredas do pensamento ocidental.
Aqui, Gaarder impôs um autocontrole à sua lúcida pedagogia
de professor de filosofia e se entregou à derivação literária com
mais liberdade que em seus títulos posteriores.
A temática filosófica evidencia-se nos prólogos a cada um dos
contos. Neles, uma "voz" oferece,
a título de "enigma", uma questão, cujo desenvolvimento ficcional -ou, melhor dizendo, existencial, vital, posto que experimentado em corpo e alma pelos
personagens- libera o Gaarder
professor de filosofia das amarras
da lógica e da fidelidade ao mundo das idéias.
Mesmo assim seu interesse continua sendo a necessidade de
questionar. Por isso, o personagem de "O Crítico" serve de porta-voz para o autor quando afirma: "Deve haver uma espécie de
mecanismo inato nos meus semelhantes que os impede de pensar
que a vida é um mistério. Eles nasceram com um bloqueio na cabeça que não lhes permite pensar
para além da porta da sua casa".
Os contos de "O Pássaro Raro"
funcionam como um esboço do
que Gaarder tentou -e acabou
por conseguir- em "O Mundo
de Sofia", ou seja, uma fusão entre
a expressão e a difusão de idéias
cuja matriz (ocidental, pelo menos) se encontra nos diálogos platônicos.
Porém aqui, a filosofia não parece ser um fim em si mesmo (o
que dispensa o autor da ênfase pedagógica assumida em "O Mundo
de Sofia"). Ela é, antes, um motor
de enigmas que remete constantemente à vida. A prova disso é a
presença recorrente de temas
existenciais -a doença, o amor, o
suicídio- que atravessa os dez
contos de "O Pássaro Raro".
"O Diagnóstico" é o exemplo
mais explícito, apesar de não ser o
conto mais bem-sucedido da coleção. Nele, uma mulher, após receber o diagnóstico de câncer, retorna a suas origens e no caminho
procede a uma espécie de "fusão
universal": se esquece dos limites
do seu corpo, perene, degradável,
e alcança uma espécie de graça
alimentada pela iminência da
morte. O resultado é uma leitura
que se constitui alegre e afirmativa da maldição cristã que condena peremptoriamente: "Do pó
vieste, ao pó retornará".
Outro momento, mais brilhante
e arriscado, é "Ponto de Encontro:
Castel Sant'Angelo", no qual dois
amantes tanto mais se aproximam quanto tentam aumentar a
distância entre si após uma ruptura impensada. E cumprem à risca
o destino que parece determinar
cada passo das pessoas apaixonadas, capazes de repetir como autômatos a história trágica de casais como Tristão e Isolda, Romeu
e Julieta, Tosca e Mario.
A leitura de "O Pássaro Raro"
pode começar descompromissada, num canto qualquer de uma
livraria confortável, mas tende a
se tornar compulsiva em virtude
de um bom motivo: aqui, encontramos um espelho sem as deformações que alimentam nosso miserável narcisismo.
O Pássaro Raro
Diagnosen Og Andre Noveller
![](http://www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
Autor: Jostein Gaarder
Tradutor: Sonali Bertuol
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24 (208 págs.)
Texto Anterior: Cinema: Festival on-line encerra inscrições na segunda Próximo Texto: "Em busca de Klingsor": A quase bomba atômica de Hitler Índice
|