|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DRAUZIO VARELLA
Raízes biológicas da monogamia
Monogamia social é uma
coisa, monogamia genética é outra. A social acontece
quando dois indivíduos de sexo
oposto se unem para formar um
casal. Já a genética é a monogamia sexual; para ocorrer, cada
membro do par precisa garantir
exclusividade de acesso sexual ao
outro.
Monogamia social é fenômeno
raríssimo entre os animais. Monogamia genética, então, nem se
fala. Até nos pássaros que formam pares amorosos, como o
joão-de-barro (acusado injustamente de emparedar no ninho a
fêmea infiel), o DNA dos filhos
muitas vezes não bate com o do
pai social.
Na evolução, o enorme esforço
exigido na construção do ninho
conferiu vantagens reprodutivas
aos pássaros que dividiam essa
tarefa com suas fêmeas. Os folgados, que deixavam a fêmea trabalhar sozinha, podiam não ter o ninho pronto no momento propício
ou serem preteridos por machos
mais cooperativos. Por isso os
cientistas acreditavam que um
macho só investiria energia na
arrumação do ninho na certeza
de que seus genes seriam transmitidos aos descendentes. Estudos
recentes de DNA abalaram essa
convicção, entretanto.
Um trabalho conduzido na
Universidade da Georgia com 180
espécies diferentes de pássaros
cantores acasalados mostrou que
apenas 10% deles eram sexualmente monogâmicos. Para a surpresa dos pesquisadores, nem os
pássaros azuis americanos, tradicionais modelos de fidelidade
conjugal, escaparam: 15% a 20%
dos filhotes são concebidos em encontros fortuitos das fêmeas com
machos da vizinhança.
Nos mamíferos, diferentemente
do que ocorre com os pássaros, a
própria monogamia social é um
acontecimento inusitado: apenas
3% a 10% formam casais que repartem os cuidados com a prole.
No entanto os estudos de DNA
mostram que, mesmo entre estes,
casamento não é sinônimo de
monogamia sexual.
Para usarmos um exemplo próximo da espécie humana, vejamos o caso dos chimpanzés, animais que formam grupos sociais e
possuem mais de 98% de genes
iguais aos nossos. Em todas as comunidades de chimpanzés já estudadas, os testes de DNA demonstram que boa parte dos filhotes é concebida por machos de
comunidades alheias. A discordância genética entre pais sociais
e genéticos chega a mais de 60%,
em alguns casos. O fato é relevante não apenas pela proximidade
genética conosco mas pelos riscos
que as fêmeas correm nessas escapadas às comunidades vizinhas
numa espécie machista como a
dos chimpanzés.
A fêmea se arrisca, porque os
chimpanzés costumam matar
premeditadamente os membros
de grupos estranhos -única espécie, além do homem, capaz dessa façanha. As fêmeas que conseguem se afastar disfarçadamente
do grupo natal e se aproximar dos
vizinhos sem despertar reação
violenta levam duas vantagens
reprodutivas: acesso a genes que
aumentarão a diversidade da
prole (portanto a probabilidade
de sobrevivência) e proteção em
caso de ataque (chimpanzés não
costumam matar fêmeas com
quem mantiveram relações sexuais).
Fenômeno raro, mas disperso
na escala animal, a monogamia
sobreviveu até nossos dias. Quando um acontecimento natural
persiste por tanto tempo e em espécies tão diversas quanto a nossa
e as dos passarinhos, é porque está apoiado em sólida base bioquímica. De fato, esse é o caso da monogamia.
Existe nas montanhas da Califórnia um pequeno roedor, pouco
maior do que um rato, que contraria a regra geral de poligamia
dos mamíferos. Durante dois
anos, um grupo da Universidade
do Texas testou o DNA de 28 famílias desses roedores em liberdade e não encontrou um só caso de
discordância do DNA paterno.
Nesses roedores, o trabalho conjunto do casal é absolutamente
imprescindível para a sobrevivência dos descendentes. A mãe dá à
luz sempre na época mais fria do
inverno, e os dois ou três filhotes
que nascem de cada vez precisam
ser aquecidos dia e noite pelo pai
e pela mãe ao mesmo tempo, para
não morrerem de frio. Se o macho
sai de perto, a fêmea abandona
imediatamente o ninho ou mata
as crias.
Um grupo da Universidade de
Maryland estudou a bioquímica
envolvida no relacionamento sexual desses roedores monogâmicos. Seu comportamento sexual é
caracterizado pelo grande número de relações mantidas no primeiro encontro amoroso. Como
consequência dessa atividade frenética, os ovários da fêmea produzem um hormônio chamado
ocitocina (existente em todos os
mamíferos), ligado à lactação e
ao comportamento maternal. Na
circulação dos machos, é liberado
outro hormônio, a vasopressina
(presente em todos os mamíferos), associado à agressividade e
ao comportamento paternal.
Ao chegarem ao cérebro, esses
hormônios vão-se ligar a minúsculos receptores situados em estações de neurônios que ficam nas
áreas que controlam as emoções e
o comportamento sexual. Injeções
de bloqueadores da produção de
ocitocina e da vasopressina impedem que os casais formem laços
de união depois do acalorado encontro inicial. Administração de
drogas que impedem o acesso dos
hormônios citados aos seus receptores cerebrais provoca exatamente o mesmo efeito.
Embora faltem pesquisas sobre
a dissonância entre monogamia
social e genética em seres humanos de diferentes culturas, os laboratórios que estudam a incidência de doenças hereditárias
nos países ocidentais têm demonstrado que pelo menos 10%
das crianças não foram concebidas por aqueles que se consideram pais delas.
Texto Anterior: Livros/lançamentos - Nobel: Brasil acompanha jornada de Naipaul Próximo Texto: Livro/lançamento: Do início ao fim Índice
|