São Paulo, sábado, 03 de novembro de 2001

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Fantasma das galés

Reprodução
O quadro "The Absinth Drinker" (O Bebedor de Absinto), de Degas (1834-1917), em detalhe da capa do livro "Jack Maggs"



Chega ao Brasil "Jack Maggs", do australiano Peter Carey, vencedor do Booker Prize 2001; livro acompanha degredado que volta da Austrália à Inglaterra vitoriana


Foi depois dessa aventura que Silas veio me buscar pela primeira vez para eu tomar aulas. Isso marcou um novo estágio de sua ligação com nossa casa, que até então era muito irregular.
Silas chegou com uma muda de roupas, e ele e minha mãe ficaram me olhando enquanto eu me vestia. Essas roupas eram tão imundas que grudaram em mim como se fossem feitas de melado, e cheiravam tão mal que parecia que eu tinha rolado na lama.
- Muito bem - disse Silas.
Minha mãe era uma mulher muito limpa, e eu nunca pensei que me deixaria vestir aquilo. Mas ela assentiu com a cabeça e virou-se para o fogão. Quando levantou a tampa da velha panela preta, o focinho de um porco foi subindo aos poucos para a borda.
- Você traz o menino de volta, não é? - perguntou ela.
- Não se preocupe, nós não vamos muito longe - falou Silas.
Mas eu descobri que não era bem assim, pois começamos o percurso atravessando a ponte de Londres.
Quando estávamos no meio do caminho, Silas virou-se para mim e disse:
- Olhe aqui, seu fedelho, você não pode andar ao meu lado. Eu vou pela calçada e você pela rua. Você tem de me seguir, mas cuidado para não ser atropelado. E não se perca de mim, pois nós vamos a um lugar muito legal. Se os guardas te pararem, pode dizer que foi fazer umas compras para o sr. Parkes, o limpador de chaminé.
- Eu não conheço nenhum sr. Parkes - disse eu.
- Conhece sim. É o sr. Charley Parkes da Ludgate Street, que pediu para você ir ajudá-lo a fazer uma coisa especial em Kensington.
Eu perguntei se aquele lugar era muito longe.
- Não muito - disse ele. - Você vai me seguir até eu entrar num estábulo; então você desce pela aléia do lado e espera um instante em frente a uma porta, que logo depois tio Silas vai abrir a porta para você.
Eu perguntei o que aconteceria depois.
- Depois você vai começar suas aulas.
Eu o segui o tempo todo pelas ruas movimentadas, desviando das patas dos cavalos e das rodas das carroças pesadas, e estava crente que iria para o colégio.
Silas tinha me falado como era um colégio. Ele era um homem letrado e uma vez acompanhou o sr. Coleridge numa viagem marítima; pelo menos era o que ele contava. De qualquer forma, ele recitava cenas inteiras de Shakespeare no nosso quarto de Pepper Alley Stairs.
Era setembro, mas ainda estava muito quente, e o céu estava azul. O movimento dos carros na ponte era assustador. Viam-se carruagens puxadas por quatro cavalos, com condutores gritando "Kensington! Chelsea! Bank! Bank! Bank!". Eu fui andando junto aos cavalos velhos e famintos; tentava manter os olhos em Silas, que ia pela calçada, no meio de gente fina, levando-me cada vez mais para longe da Londres que eu conhecia.
Eu pensei que estava me preparando para o futuro e fiquei muito contente com o que vi à minha volta.


"Eles viram um menino maltrapilho e compreenderam, melhor que eu, que tipo de pessoa eu era"


As calçadas estavam lotadas de homens e mulheres bem-vestidos. As casas eram grandiosas. Homens de calças fofas de veludo e meias brancas passavam dentro das carruagens, e homens de libré esperavam ao lado das portas grandes com aldrabas de bronze. Eu não compreendia por que Silas tinha me feito usar roupas tão sujas e por que tinha falado aquela história boba do limpador de chaminé.
Mas eu me recordo de que estava de coração leve e muito feliz. Somente quando chegamos ao Mall que eu, sentindo-me muito pequeno, fiquei nervosíssimo. Um espaço muito grande e bonito, terminando com portões que talvez fossem os portões guardados por São Pedro, de tão brilhantes que eram à distância.
Porém mesmo quando me aproximei do palácio de Buckingham ninguém me perguntou para onde eu ia. Eles viram um menino maltrapilho e compreenderam, melhor que eu, que tipo de pessoa eu era.
Fui caminhando ao longo do muro do palácio e ninguém me parou. Passei a mão pelos tijolos, imaginando o tempo todo como seria a escola que Silas escolhera para mim. Não sabia se eu poderia dormir lá ou se teria de fazer esse percurso todo dia.
Já estava escuro quando nos aproximamos do nosso destino final; andamos por uma rua com lindas casas brancas, depois por outra cheia de carruagens pretas e cocheiros segurando as rédeas dos cavalos. Ali estava o estábulo que Silas mencionara, onde ele entrou muito orgulhoso, com os sapatos brilhando; eu, nos meus andrajos, caminhei um pouco mais até encontrar a pequena aléia malcheirosa. Parei diante de uma porta preta cravejada de várias ferraduras de prata.
Num instante a porta estranha abriu-se e eu entrei.
Esperei para ver onde estaria minha mesa de estudo, pois Silas falava muito para mim da escola da abadia de Westminster, onde ele aprendera latim; mas não havia nenhuma carteira ali, era uma sala sombria com um forte cheiro de couro e óleo de linhaça, e vários arreios pendurados nas paredes.


"Como a morte não chegou, chutei minhas botas e fechei os ombros, e ao tentar voltar para o alto escorreguei mais para baixo"


Havia uma escada na parede dando para uma espécie de salão. Silas subiu essa escada como se fosse uma aranha no escuro.
Eu o segui e dei de cara com ele olhando a noite, por uma janela. Ele havia tirado o casaco e quando me viu ao seu lado subiu no telhado da casa ao lado.
Estendeu os braços para mim e disse:
- Venha com cuidado e mantenha a cabeça para baixo.
Só então, enquanto eu o seguia pelo telhado, é que eu compreendi que não estava indo para a escola. Quando ele chegou diante de uma chaminé, eu não entendi bem a situação.
Silas levantou com cuidado a tampa da chaminé e colocou-a no telhado.
- Tudo bem, seu fedelho, agora você desce.
- Para quê? - perguntei.
- Para quê? Para quê? Ela não te disse? - falou, mostrando surpresa.
- Se está se referindo à minha mãe, ela não me disse nada.
- Como ela é esquecida! Mas não faz mal, é uma tarefa simples. Desça por esta chaminé aqui e destranque a porta dos fundos da casa. É só isso.
Eu perguntei o que iria acontecer depois.
- Eu vou entrar na casa - disse ele.
Eu falei que poderia cair e quebrar meus ossos.
- Bobagem. Entre logo - falou Silas.
Eu disse que estava com muito medo.
- Não há nada por ter medo - disse Silas, fazendo uma careta. - Vai achar mais fácil do que pensa. É como descer as escadas.
Dizendo isso ele me pegou e empurrou para baixo, como se estivesse carregando um canhão.
Logo depois eu tive razão de duvidar se Silas algum dia teria entrado numa chaminé, pois ela era apertada que nem um cachimbo; as paredes eram tão compactadas de fuligem que se eu não tivesse levado um empurrão na cabeça não teria conseguido entrar. Mas depois do empurrão fiquei preso como uma rolha no gargalo de uma garrafa, uns centímetros abaixo, tossindo, choramingando e morrendo de medo.
Então me empurraram pelo ombro e eu deslizei mais um pouco, mas a rolha ficou presa no escuro. Eu tive muito medo e imaginei que ia morrer.
Como a morte não chegou, chutei minhas botas e fechei os ombros e, ao tentar voltar para o alto, escorreguei mais para baixo.
Eu não tinha idéia do ponto em que me encontrava na chaminé, mas de qualquer forma fiquei preso ali durante muito tempo.
Então um bloco grande de fuligem deslocou das paredes e eu fui caindo. A chaminé estava se alargando. Alarmado, arranhei as paredes, levando assim mais poeira para meus pulmões. Comecei a tossir e engasgar. Eu teria caído na grade de baixo se não tivesse esticado os braços e as pernas, conseguindo assim me prender nas protuberâncias do interior da chaminé, que tinham sido comparadas por Silas a uma escada.
A essa altura eu devia estar a meio caminho da descida, mas embora estivesse surpreso de não ter morrido, continuava com um medo pavoroso; a escuridão era total, eu tossia e engasgava sem parar com a fuligem que caía e sabia que quando a chaminé se alargasse mais não conseguiria me manter preso nas paredes.
Olhei para cima na direção do céu, mas não distingui nada. Achei que veria Silas olhando para mim, mas embora eu o chamasse não tive nenhuma resposta. E a fuligem não parava de cair.
Comecei a chorar. Devo ter chorado durante muito tempo e Silas certamente ficou impaciente de esperar que eu chegasse na porta dos fundos. Voltei a me mexer, com muito cuidado, e teria levado uma boa hora para descer se não tivesse escorregado e caído.
Caí na lareira, com o vento batendo em mim, e fiquei ali naquela grade fria e dura, arquejando como um peixe fora d'água.
Quando passei a respirar normalmente constatei, para minha grande surpresa, que não estava morto. Minhas pernas doíam um pouco e eu tinha um grande galo na cabeça, mas saí da lareira e fiquei olhando em volta da sala na qual tinha entrado tão abruptamente. Meus olhos tinham se acostumado à escuridão, e eu pude ver melhor do que imaginava que veria.
Aquele lugar era incrível.
A primeira coisa que eu senti foi o cheiro das maçãs e laranjas, e talvez de canela, ou pelo menos de uma coisa doce e estranha. Não havia cheiro de esgoto, e foi isso que tornou os outros cheiros mais doces ainda e me deu uma sensação de grande conforto.
Era uma sala dupla e comprida, com grandes portas de vidro que podiam ser fechadas no meio, dividindo a sala em dois cômodos separados; naquele momento as portas estavam abertas, e a sala era maior que a casa toda de Mary Britten, um lugar úmido, de teto baixo, com apenas uma cama e duas cadeiras para nós três. Ali havia poltronas, sofás e espreguiçadeiras -peças de mobiliário que eu nunca vira em toda a minha vida- que poderiam acomodar metade das pessoas do nosso pequeno pátio. No meu encantamento sentei-me em cada uma delas e só anos depois é que percebi que devo ter sujado tudo de fuligem.
Mas eu tinha de abrir a porta para Silas.



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