São Paulo, sábado, 03 de novembro de 2001

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"Quero saber como uma prisão vira um país"

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

Jack Maggs, o protagonista do romance de Peter Carey que chega em dezembro ao Brasil, é um degredado. Nascido em Londres no século 19, o garoto órfão cresce no submundo e acaba preso e deportado para a colônia inglesa de Nova Gales do Sul, onde começou a ocupação da Austrália.
O romance principia quando Maggs retorna, tempos depois, à Inglaterra, "para ser bem preciso, eram seis horas do dia 15 de abril do ano de 1837". Desembarca em plena Londres vitoriana e dá início à busca que guiará o livro.
As origens da Austrália são um tema recorrente na obra de Carey. Seu livro mais recente, "True Story of the Kelly Gang" (Verdadeira História do Bando de Kelly), levou o disputado Booker Prize contando uma história de ficção baseada nas peripécias do herói popular Ned Kelly, uma espécie de Robin Hood australiano, que morreu enforcado em 1880.
Carey já havia ganho o Booker Prize uma vez, por "Oscar e Lucinda" (editora Record). Ele e o sul-africano J.M. Coetzee são agora os dois únicos a ganharem o prêmio mais importante da língua inglesa mais de uma vez.
"Tanto "Jack Maggs" como "Kelly Gang" lidam com o fato de a Austrália ter sido construída, no início, por condenados ingleses. Dentro da história européia, meu país surge como uma grande colônia penal, que aos poucos vai se transformando em uma nação. Além de contar histórias, estes livros tentam também levantar a discussão sobre as consequências que essa colonização trouxe para a cultura e as sequelas disso na nossa sociedade atual", disse Carey em entrevista à Folha, por telefone, de Nova York, onde vive.
Para Carey, um dos aspectos mais marcantes do legado desse "passado penal" no cotidiano é o fato de os australianos terem resistência a servir os outros. "Nossos garçons, por exemplo, têm de lutar muito contra essa herança. Não gostamos de nos submeter em geral, e isso é generalizado."
Outro exemplo que aponta é o da simpatia por aquele que parece ser o mais fraco. "Um ótimo exemplo disso é o episódio das Olimpíadas de Sydney envolvendo aquele nadador de um país africano que nunca havia competido e que terminou a prova sozinho, com uma dificuldade imensa (Eric Moussambani, da Guiné Equatorial). Ele virou um popstar enquanto esteve em meu país. A identificação dos australianos com esse anti-herói também tem explicação nesse passado."
Carey diz que sua curiosidade pelas raízes da cultura australiana tem também uma explicação pessoal. "Sempre me impressionei com meu pai, que nunca havia estado na Inglaterra, mas ainda assim chamava-a de lar. Por que o nosso sentimento de pertencer a esse país ainda é tão forte? Essa é uma questão que me preocupa."
No romance, não só o protagonista Jack Maggs como outros personagens são órfãos. Carey aponta, aqui, mais uma referência à história australiana. "Este foi um país que teve suas crianças desenraizadas. É um país de órfãos que vieram, rompidos com sua terra natal, e de outros que ficaram órfãos por imigrarem."

Charles Dickens
Para construir "Jack Maggs", Peter Carey buscou inspiração em "Great Expectations" ("Grandes Esperanças", Ediouro), de Charles Dickens. "Misturei algumas características de personagens de Dickens nos meus. Ele próprio aparece sutilmente em algumas características do escritor Tobias Oates", diz Carey. Em "Jack Maggs", Oates é um estudioso de crimes, que trabalha com hipnose, e usa seus conhecimentos para investigar a mente das pessoas. Dessa matéria-prima, escreve artigos e romances. "Tobias Oates é como uma sombra, às vezes um espelho, de Dickens", diz.
"Construí Jack Maggs como um homem que não percebe o que é prejudicar alguém. Ele coloca sua vida em risco para voltar ao lugar de onde veio e onde primeiro rompeu com as coisas. O livro é sua tentativa de entender o que é causar dano aos outros. Ele acredita que a resposta deve vir do lugar de onde pertenceu e para o qual tenta retornar, mesmo sem saber exatamente onde isso fica."
O romance coloca o anti-herói Jack Maggs em meio à claustrofobia de um lar vitoriano, mostrando como as rígidas regras daquela sociedade se estenderam também às colônias britânicas, como a Austrália.
"Esse período me fascina muito. Mas não gosto de fazer romances históricos propriamente ditos. Gosto de brincar com uma história possível, paralela, à história propriamente. Não sugiro um parentesco com a verdade, apenas jogo com as alternativas", afirma o autor.

Cinema
Carey também gosta de vincular seu trabalho ao cinema. Além de ter tido "Oscar e Lucinda" levado às telas, com Ralph Fiennes e Cate Blanchett no elenco, o australiano também assinou o roteiro de "Até o Fim do Mundo", de Wim Wenders, e prepara agora o de "Jack Maggs". Os direitos de filmagem de "True Story of the Kelly Gang", por sua vez, foram comprados pelo diretor irlandês Neil Jordan.

Mais Peter Carey
Também acaba de chegar às prateleiras brasileiras "30 Dias em Sydney" (Companhia das Letras), que Carey escreveu no ano passado. A obra é parte da série "O Escritor e a Cidade", que também já tem publicado aqui "O Flâneur", de Edmund White. O lançamento no Brasil de "Kelly Gang" deve ser em março de 2002, pela Record.



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