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"Quero saber como uma prisão vira um país"
SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA
Jack Maggs, o protagonista do
romance de Peter Carey que chega em dezembro ao Brasil, é um
degredado. Nascido em Londres
no século 19, o garoto órfão cresce
no submundo e acaba preso e deportado para a colônia inglesa de
Nova Gales do Sul, onde começou
a ocupação da Austrália.
O romance principia quando
Maggs retorna, tempos depois, à
Inglaterra, "para ser bem preciso,
eram seis horas do dia 15 de abril
do ano de 1837". Desembarca em
plena Londres vitoriana e dá início à busca que guiará o livro.
As origens da Austrália são um
tema recorrente na obra de Carey.
Seu livro mais recente, "True
Story of the Kelly Gang" (Verdadeira História do Bando de Kelly),
levou o disputado Booker Prize
contando uma história de ficção
baseada nas peripécias do herói
popular Ned Kelly, uma espécie
de Robin Hood australiano, que
morreu enforcado em 1880.
Carey já havia ganho o Booker
Prize uma vez, por "Oscar e Lucinda" (editora Record). Ele e o
sul-africano J.M. Coetzee são agora os dois únicos a ganharem o
prêmio mais importante da língua inglesa mais de uma vez.
"Tanto "Jack Maggs" como
"Kelly Gang" lidam com o fato de a
Austrália ter sido construída, no
início, por condenados ingleses.
Dentro da história européia, meu
país surge como uma grande colônia penal, que aos poucos vai se
transformando em uma nação.
Além de contar histórias, estes livros tentam também levantar a
discussão sobre as consequências
que essa colonização trouxe para
a cultura e as sequelas disso na
nossa sociedade atual", disse Carey em entrevista à Folha, por telefone, de Nova York, onde vive.
Para Carey, um dos aspectos
mais marcantes do legado desse
"passado penal" no cotidiano é o
fato de os australianos terem resistência a servir os outros. "Nossos garçons, por exemplo, têm de
lutar muito contra essa herança.
Não gostamos de nos submeter
em geral, e isso é generalizado."
Outro exemplo que aponta é o
da simpatia por aquele que parece
ser o mais fraco. "Um ótimo
exemplo disso é o episódio das
Olimpíadas de Sydney envolvendo aquele nadador de um país
africano que nunca havia competido e que terminou a prova sozinho, com uma dificuldade imensa
(Eric Moussambani, da Guiné
Equatorial). Ele virou um popstar
enquanto esteve em meu país. A
identificação dos australianos
com esse anti-herói também tem
explicação nesse passado."
Carey diz que sua curiosidade
pelas raízes da cultura australiana
tem também uma explicação pessoal. "Sempre me impressionei
com meu pai, que nunca havia estado na Inglaterra, mas ainda assim chamava-a de lar. Por que o
nosso sentimento de pertencer a
esse país ainda é tão forte? Essa é
uma questão que me preocupa."
No romance, não só o protagonista Jack Maggs como outros
personagens são órfãos. Carey
aponta, aqui, mais uma referência
à história australiana. "Este foi
um país que teve suas crianças desenraizadas. É um país de órfãos
que vieram, rompidos com sua
terra natal, e de outros que ficaram órfãos por imigrarem."
Charles Dickens
Para construir "Jack Maggs",
Peter Carey buscou inspiração em
"Great Expectations" ("Grandes
Esperanças", Ediouro), de Charles Dickens. "Misturei algumas
características de personagens de
Dickens nos meus. Ele próprio
aparece sutilmente em algumas
características do escritor Tobias
Oates", diz Carey. Em "Jack
Maggs", Oates é um estudioso de
crimes, que trabalha com hipnose, e usa seus conhecimentos para
investigar a mente das pessoas.
Dessa matéria-prima, escreve artigos e romances. "Tobias Oates é
como uma sombra, às vezes um
espelho, de Dickens", diz.
"Construí Jack Maggs como um
homem que não percebe o que é
prejudicar alguém. Ele coloca sua
vida em risco para voltar ao lugar
de onde veio e onde primeiro
rompeu com as coisas. O livro é
sua tentativa de entender o que é
causar dano aos outros. Ele acredita que a resposta deve vir do lugar de onde pertenceu e para o
qual tenta retornar, mesmo sem
saber exatamente onde isso fica."
O romance coloca o anti-herói
Jack Maggs em meio à claustrofobia de um lar vitoriano, mostrando como as rígidas regras daquela
sociedade se estenderam também
às colônias britânicas, como a
Austrália.
"Esse período me fascina muito.
Mas não gosto de fazer romances
históricos propriamente ditos.
Gosto de brincar com uma história possível, paralela, à história
propriamente. Não sugiro um parentesco com a verdade, apenas
jogo com as alternativas", afirma
o autor.
Cinema
Carey também gosta de vincular
seu trabalho ao cinema. Além de
ter tido "Oscar e Lucinda" levado
às telas, com Ralph Fiennes e Cate
Blanchett no elenco, o australiano
também assinou o roteiro de "Até
o Fim do Mundo", de Wim Wenders, e prepara agora o de "Jack
Maggs". Os direitos de filmagem
de "True Story of the Kelly Gang",
por sua vez, foram comprados pelo diretor irlandês Neil Jordan.
Mais Peter Carey
Também acaba de chegar às
prateleiras brasileiras "30 Dias em
Sydney" (Companhia das Letras),
que Carey escreveu no ano passado. A obra é parte da série "O Escritor e a Cidade", que também já
tem publicado aqui "O Flâneur",
de Edmund White. O lançamento
no Brasil de "Kelly Gang" deve ser
em março de 2002, pela Record.
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