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NELSON ASCHER
Gatos escaldados
De todas as coisas que diferenciam o Ocidente e muito
do mundo industrializado do restante da humanidade, uma das
cruciais é a experiência da guerra
moderna.
As epopéias bélicas podem não
ser a manifestação mais antiga
da poesia. No entanto, logo após
registrar o números de ovelhas
que seu monarca possuía e o de
escravos que capturara, mal uma
civilização começava a escrever,
ela tratava de preservar a memória lendária de suas grandes batalhas. A luta entre Pandavas e
Kauravas constitui o âmago do
"Mahabharata" assim como a
guerra de Tróia é o tema da "Ilíada". De canções de vitória, que
formam o estrato mais arcaico do
Antigo Testamento, aos pungentes lamentos de soldados do "Shi
Tching" chinês, homens matando
homens tem sido, ao lado das cosmogonias, um assunto imperecível.
O antropólogo francês Pierre
Clastres (que trabalhou no Brasil)
contradisse o que havia sido voz
corrente em sua disciplina, ou seja, que as sociedades primitivas
guerreavam entre si quando fracassava o intercâmbio pacífico. A
regra, para ele, era o oposto, pois
apenas se a reação reflexiva de
duas tribos que se encontravam, a
de combaterem-se, não rendia
um veredicto claro, é que ambas
se conformavam em conviver.
Não são poucos os etnólogos que
documentaram o quanto nossa
espécie prefere o confronto à coexistência.
Se bem que do ponto de vista
das metas os entreveros paleolíticos evocassem antes a Segunda
Guerra Mundial do que, digamos, as rixas entre dois feudos
medievais, pois neles cada grupo
almejava o extermínio do antagonista, o modo como esse esporte
tradicional vem evoluindo parece
variar menos historicamente que
geograficamente. O norte-americano Victor Davis Hanson, que,
com artigos sobre o 11 de Setembro de 2001 e suas consequências,
se tornou famoso em seu país, argumentara, em "The Western
Way of War" (A Maneira Ocidental de Guerrear, 1989), que a
guerra moderna nasceu na Grécia clássica. Uma vez que em suas
cidades-estado o grosso das tropas se compunha não de um
Exército profissional, mas de cidadãos livres, que tinham mais o
que fazer -por exemplo, vinho e
azeite de oliva-, seu interesse
consistia em resolver as querelas
rapidamente, concentrando o
máximo de força no menor intervalo temporal. Surge daí o conceito de uma batalha decisiva na
qual cada contendor concentra o
potencial numa ocasião e aposta
num "tudo ou nada".
Alexandre da Macedônia, Julio
Cesar e Napoleão Bonaparte etc.
deram continuidade a esse conceito até que se chegou, a partir
do verão de 1914, à sua apoteose.
Enquanto Hanson fala do nexo
entre um Exército não permanente de cidadãos livres e a busca de
uma vitória indiscutível na batalha final, o britânico John Keegan, especialmente em sua história da Primeira Guerra, deu um
passo adiante. A carnificina inédita de 1914-18, que devastou as
populações masculinas européias
em batalhas que, envolvendo centenas de milhares de soldados,
chegaram a acarretar, nos dias
mais intensos, dezenas de milhares de baixas, seria, de acordo
com ele, uma decorrência da democracia representativa. Eis o resultado perverso dos progressos
políticos do século 19: um homem,
um voto, cada qual um cidadão
com direito e, afinal, o dever de
portar armas. Outros progressos
associaram-se aos políticos com
os avanços tecnológicos ensejando a guerra industrial epitomizada pela máquina de produzir cadáveres em série: a metralhadora.
A Primeira Grande Guerra foi,
sob diversos ângulos, mais importante do que sua sequência duas
décadas depois, seja porque, para
os envolvidos, que haviam crescido num universo mental diferente, ela converteu-se no batismo de
fogo da modernidade, seja porque seus principais desdobramentos geopolíticos, ligados à dissolução dos impérios Tsarista,
Austro-Húngaro e Otomano, estão longe de terem sido equacionados. O conflito em questão no
qual a convergência das massas
democráticas reduzidas a bucha
de canhão com a mecanização
tornou-se, embora preconizado
pela Guerra Civil Americana, o
exemplo acabado da revolução
industrial num contexto bélico.
Não deixa, contudo, de ser verdade que, em quase todas as frentes,
sua sangreira limitou-se aos combatentes e a áreas que, não obstante sua enormidade, podiam
ser definidas como campos de batalha. Já o que aconteceu entre
1939 e 1945 foi a extensão da destrutividade aos civis em geral, a
todos os territórios que esses habitavam, e isso em ambos os extremos da Eurásia.
A escala da devastação que
atingiu a Europa, sobretudo sua
metade oriental, e o extremo
Oriente não tem igual em outras
partes do planeta. Para bem ou
para mal, os povos africanos, os
demais asiáticos, americanos de
norte e sul, bem como a maioria
dos que vivem no Oriente Médio,
foram poupados à experiência da
guerra industrial total. Não que
não tenham sofrido e continuem
a sofrer em virtude de conflitos
horríveis e inacabáveis. Ainda assim, com poucas exceções, essas
são guerras arcaicas de atrito,
confrontos "hobbesianos" de todos contra todos onde, a uma recente explosão populacional,
aliaram-se a fartura de armamentos fornecidos pelos países industrializados, gerando um morticínio cujo caráter, apesar dos
números astronômicos, mantém-se artesanal. Se os gatos previamente escaldados não voltaram a
se apegar nem sequer à água fria,
a retórica bélica que se ouve em
outros cantos, uma retórica que,
em vez de reconhecer a contragosto a inevitabilidade da guerra,
glorifica-a como algo desejável,
patenteia que nem todos os seres
humanos vivem no mesmo século
ou no mesmo mundo.
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