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São Paulo, segunda-feira, 03 de novembro de 2003

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NELSON ASCHER

Gatos escaldados

De todas as coisas que diferenciam o Ocidente e muito do mundo industrializado do restante da humanidade, uma das cruciais é a experiência da guerra moderna.
As epopéias bélicas podem não ser a manifestação mais antiga da poesia. No entanto, logo após registrar o números de ovelhas que seu monarca possuía e o de escravos que capturara, mal uma civilização começava a escrever, ela tratava de preservar a memória lendária de suas grandes batalhas. A luta entre Pandavas e Kauravas constitui o âmago do "Mahabharata" assim como a guerra de Tróia é o tema da "Ilíada". De canções de vitória, que formam o estrato mais arcaico do Antigo Testamento, aos pungentes lamentos de soldados do "Shi Tching" chinês, homens matando homens tem sido, ao lado das cosmogonias, um assunto imperecível.
O antropólogo francês Pierre Clastres (que trabalhou no Brasil) contradisse o que havia sido voz corrente em sua disciplina, ou seja, que as sociedades primitivas guerreavam entre si quando fracassava o intercâmbio pacífico. A regra, para ele, era o oposto, pois apenas se a reação reflexiva de duas tribos que se encontravam, a de combaterem-se, não rendia um veredicto claro, é que ambas se conformavam em conviver. Não são poucos os etnólogos que documentaram o quanto nossa espécie prefere o confronto à coexistência.
Se bem que do ponto de vista das metas os entreveros paleolíticos evocassem antes a Segunda Guerra Mundial do que, digamos, as rixas entre dois feudos medievais, pois neles cada grupo almejava o extermínio do antagonista, o modo como esse esporte tradicional vem evoluindo parece variar menos historicamente que geograficamente. O norte-americano Victor Davis Hanson, que, com artigos sobre o 11 de Setembro de 2001 e suas consequências, se tornou famoso em seu país, argumentara, em "The Western Way of War" (A Maneira Ocidental de Guerrear, 1989), que a guerra moderna nasceu na Grécia clássica. Uma vez que em suas cidades-estado o grosso das tropas se compunha não de um Exército profissional, mas de cidadãos livres, que tinham mais o que fazer -por exemplo, vinho e azeite de oliva-, seu interesse consistia em resolver as querelas rapidamente, concentrando o máximo de força no menor intervalo temporal. Surge daí o conceito de uma batalha decisiva na qual cada contendor concentra o potencial numa ocasião e aposta num "tudo ou nada".
Alexandre da Macedônia, Julio Cesar e Napoleão Bonaparte etc. deram continuidade a esse conceito até que se chegou, a partir do verão de 1914, à sua apoteose. Enquanto Hanson fala do nexo entre um Exército não permanente de cidadãos livres e a busca de uma vitória indiscutível na batalha final, o britânico John Keegan, especialmente em sua história da Primeira Guerra, deu um passo adiante. A carnificina inédita de 1914-18, que devastou as populações masculinas européias em batalhas que, envolvendo centenas de milhares de soldados, chegaram a acarretar, nos dias mais intensos, dezenas de milhares de baixas, seria, de acordo com ele, uma decorrência da democracia representativa. Eis o resultado perverso dos progressos políticos do século 19: um homem, um voto, cada qual um cidadão com direito e, afinal, o dever de portar armas. Outros progressos associaram-se aos políticos com os avanços tecnológicos ensejando a guerra industrial epitomizada pela máquina de produzir cadáveres em série: a metralhadora.
A Primeira Grande Guerra foi, sob diversos ângulos, mais importante do que sua sequência duas décadas depois, seja porque, para os envolvidos, que haviam crescido num universo mental diferente, ela converteu-se no batismo de fogo da modernidade, seja porque seus principais desdobramentos geopolíticos, ligados à dissolução dos impérios Tsarista, Austro-Húngaro e Otomano, estão longe de terem sido equacionados. O conflito em questão no qual a convergência das massas democráticas reduzidas a bucha de canhão com a mecanização tornou-se, embora preconizado pela Guerra Civil Americana, o exemplo acabado da revolução industrial num contexto bélico. Não deixa, contudo, de ser verdade que, em quase todas as frentes, sua sangreira limitou-se aos combatentes e a áreas que, não obstante sua enormidade, podiam ser definidas como campos de batalha. Já o que aconteceu entre 1939 e 1945 foi a extensão da destrutividade aos civis em geral, a todos os territórios que esses habitavam, e isso em ambos os extremos da Eurásia.
A escala da devastação que atingiu a Europa, sobretudo sua metade oriental, e o extremo Oriente não tem igual em outras partes do planeta. Para bem ou para mal, os povos africanos, os demais asiáticos, americanos de norte e sul, bem como a maioria dos que vivem no Oriente Médio, foram poupados à experiência da guerra industrial total. Não que não tenham sofrido e continuem a sofrer em virtude de conflitos horríveis e inacabáveis. Ainda assim, com poucas exceções, essas são guerras arcaicas de atrito, confrontos "hobbesianos" de todos contra todos onde, a uma recente explosão populacional, aliaram-se a fartura de armamentos fornecidos pelos países industrializados, gerando um morticínio cujo caráter, apesar dos números astronômicos, mantém-se artesanal. Se os gatos previamente escaldados não voltaram a se apegar nem sequer à água fria, a retórica bélica que se ouve em outros cantos, uma retórica que, em vez de reconhecer a contragosto a inevitabilidade da guerra, glorifica-a como algo desejável, patenteia que nem todos os seres humanos vivem no mesmo século ou no mesmo mundo.



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