São Paulo, sexta-feira, 03 de novembro de 2006

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Cinema - Análise/"Macunaíma"

No filme de Joaquim, anti-herói perde

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Quando, no Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade diz "Tupi, or not tupi, that's the question" ou "Antropofagia: a transformação permanente do tabu em totem", trata-se de uma antropofagia com sinal positivo: devoração do mais forte e transformação de sua força no corpo, na alma e na língua daquele que devora. É o atrasado comendo o moderno, o recalque ascendendo à superfície, o europeu aportando aqui com sua civilização, mas sendo capturado por um misto de medo e encantamento, que acaba por abrasileirá-lo, apropriando-se singularmente de seus poderes.
A rapsódia "Macunaíma", de Mario de Andrade, é freqüentemente compreendida como um emblema antropófago: o índio negro que vira branco, a natureza que vai para a cidade, o enfrentamento entre o anti-herói preguiçoso e o gigante acumulador e, finalmente, a metamorfose de Macunaíma em constelação. Tudo seria índice de uma devoração do moderno pelo arcaico, de um Brasil anárquico e alegre engolindo o Brasil ordeiro e sisudo.

Vitória ou derrota
Mas não é assim nem no livro, de 1928, muito menos no filme de Joaquim Pedro de Andrade, de 1969, que agora volta às telas antes de seu lançamento em DVD, previsto para 17/11. Mário de Andrade, ao trazer Macunaíma de volta ao Uraricoera, deixá-lo ser devorado por Vei, a Sol e, finalmente ao transformá-lo numa constelação que só pode ser vista no hemisfério Norte, ainda dá margem a alguma especulação. Afinal, antes de virar estrela, o herói diz: "Não vim ao mundo para ser pedra!", num grito que, se aponta para sua derrocada, também mantém sua potência.
E o leitor termina o livro triste, mas encantado com o personagem e necessariamente em dúvida: Macunaíma é derrotado ou vitorioso? É claro que não há resposta definitiva.
No filme de Joaquim Pedro de Andrade, ao contrário do livro, não resta essa dúvida. Apesar do ritmo de chanchada e das alusões ao tropicalismo, ali a antropofagia só tem sentido negativo: o mais forte engole o mais fraco, o moderno engole o arcaico, o útil engole o inútil, e Macunaíma fracassa.
Aqui, vale o diagnóstico de Darcy Ribeiro sobre a antropofagia aplicada ao herói sem-caráter: não se trata mais do Brasil engolindo o estrangeiro, mas do Brasil sendo engolido por si mesmo, num processo que seria então endofágico. Pior: no filme, como notou Ismail Xavier em "Macunaíma: as Ilusões da Eterna Infância", o herói se equipara ao próprio gigante acumulador contra o qual luta no esvaziamento de alguma busca, mesmo depois de derrotá-lo.
Dina Sfat, a guerrilheira urbana "papo firme", linda e moderna, que faz de Macunaíma um objeto sexual e que interpreta Ci, a única mulher que o herói amou, representa a tentativa da afirmação de uma nova ordem possível, mas que também não encontra lugar na desordem instituída daquele momento da história brasileira.
Já Grande Otelo parece ter nascido para interpretar Macunaíma, ou melhor, Macunaíma parece ter sido criado para ser desempenhado pelo ator. E o desejo que se cria no espectador, de tão macunaímico e brasileiro que é Grande Otelo, é que ele, transformado em branco e belo, ou transformado no ator Paulo José, ache um espaço para si na cidade grande e no mundo todo.
Mas não. Macunaíma não acha e tampouco volta a ilha de Marapatá, como no livro, para recuperar sua consciência.
E nós, agora no futuro dos dois Macunaímas, o de 1928 e o de 1969, com a cópia do filme restaurada, será que conseguimos encontrar algum caminho que una ordem e alegria? William Blake diz que "aquele cuja face não luz nunca será uma estrela". Entre o romance e o filme, o que pode ter acontecido com a luz que um dia brilhou na face de Macunaíma?


MACUNAÍMA     
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Com: Paulo José, Grande Otelo e Dina Staf
Onde: em cartaz no Frei Caneca Unibanco Arteplex


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