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Cinema - Análise/"Macunaíma"
No filme de Joaquim, anti-herói perde
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Quando, no Manifesto
Antropófago, Oswald
de Andrade diz "Tupi,
or not tupi, that's the question"
ou "Antropofagia: a transformação permanente do tabu em
totem", trata-se de uma antropofagia com sinal positivo: devoração do mais forte e transformação de sua força no corpo,
na alma e na língua daquele que
devora. É o atrasado comendo o
moderno, o recalque ascendendo à superfície, o europeu aportando aqui com sua civilização,
mas sendo capturado por um
misto de medo e encantamento, que acaba por abrasileirá-lo,
apropriando-se singularmente
de seus poderes.
A rapsódia "Macunaíma", de
Mario de Andrade, é freqüentemente compreendida como um
emblema antropófago: o índio
negro que vira branco, a natureza que vai para a cidade, o enfrentamento entre o anti-herói
preguiçoso e o gigante acumulador e, finalmente, a metamorfose de Macunaíma em
constelação. Tudo seria índice
de uma devoração do moderno
pelo arcaico, de um Brasil anárquico e alegre engolindo o Brasil ordeiro e sisudo.
Vitória ou derrota
Mas não é assim nem no livro, de 1928, muito menos no
filme de Joaquim Pedro de Andrade, de 1969, que agora volta
às telas antes de seu lançamento em DVD, previsto para 17/11.
Mário de Andrade, ao trazer
Macunaíma de volta ao Uraricoera, deixá-lo ser devorado
por Vei, a Sol e, finalmente ao
transformá-lo numa constelação que só pode ser vista no hemisfério Norte, ainda dá margem a alguma especulação. Afinal, antes de virar estrela, o herói diz: "Não vim ao mundo para ser pedra!", num grito que, se
aponta para sua derrocada,
também mantém sua potência.
E o leitor termina o livro triste, mas encantado com o personagem e necessariamente em
dúvida: Macunaíma é derrotado ou vitorioso? É claro que
não há resposta definitiva.
No filme de Joaquim Pedro
de Andrade, ao contrário do livro, não resta essa dúvida. Apesar do ritmo de chanchada e das
alusões ao tropicalismo, ali a
antropofagia só tem sentido
negativo: o mais forte engole o
mais fraco, o moderno engole o
arcaico, o útil engole o inútil, e
Macunaíma fracassa.
Aqui, vale o diagnóstico de
Darcy Ribeiro sobre a antropofagia aplicada ao herói sem-caráter: não se trata mais do Brasil engolindo o estrangeiro, mas
do Brasil sendo engolido por si
mesmo, num processo que seria então endofágico. Pior: no
filme, como notou Ismail Xavier em "Macunaíma: as Ilusões da Eterna Infância", o herói se equipara ao próprio gigante acumulador contra o
qual luta no esvaziamento de
alguma busca, mesmo depois
de derrotá-lo.
Dina Sfat, a guerrilheira urbana "papo firme", linda e moderna, que faz de Macunaíma
um objeto sexual e que interpreta Ci, a única mulher que o
herói amou, representa a tentativa da afirmação de uma nova
ordem possível, mas que também não encontra lugar na desordem instituída daquele momento da história brasileira.
Já Grande Otelo parece ter
nascido para interpretar Macunaíma, ou melhor, Macunaíma
parece ter sido criado para ser
desempenhado pelo ator. E o
desejo que se cria no espectador, de tão macunaímico e brasileiro que é Grande Otelo, é
que ele, transformado em branco e belo, ou transformado no
ator Paulo José, ache um espaço para si na cidade grande e no
mundo todo.
Mas não. Macunaíma não
acha e tampouco volta a ilha de
Marapatá, como no livro, para
recuperar sua consciência.
E nós, agora no futuro dos
dois Macunaímas, o de 1928 e o
de 1969, com a cópia do filme
restaurada, será que conseguimos encontrar algum caminho
que una ordem e alegria? William Blake diz que "aquele cuja
face não luz nunca será uma estrela". Entre o romance e o filme, o que pode ter acontecido
com a luz que um dia brilhou na
face de Macunaíma?
MACUNAÍMA
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Com: Paulo José, Grande Otelo e Dina Staf
Onde: em cartaz no Frei Caneca Unibanco Arteplex
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