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Refugiada somali narra suas duas vidas
Em "Infiel", que já está na lista dos mais vendidos, Ayaan Hirsi Ali fala de sua jornada do berço muçulmano ao Ocidente
Ex-deputada na Holanda, Hirsi Ali perdeu cidadania
do país, vive nos EUA e defende que o Alcorão
é violento por essência
EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL
A somali Ayaan Hirsi Ali, 37,
é uma mulher cercada de polêmicas. Refugiada na Holanda,
onde se tornou deputada, a ferrenha crítica do islamismo, sua
religião de berço, denunciou a
prática da circuncisão feminina
na Somália -a que ela mesma
foi submetida, aos cinco anos,
numa cerimônia feita pela avó.
Co-roteirista do filme "Submissão", sobre a opressão às
mulheres nas culturas islâmicas, Hirsi Ali teve de deixar o
país depois que o diretor, Theo
van Gogh, foi assassinado, em
2004, por um radical islamista.
No corpo de Van Gogh, o assassino pregou uma carta dizendo
que a próxima vítima seria ela.
Hirsi Ali, a quem o escritor
Salman Rushdie chamou de
"primeira refugiada da Europa
Ocidental desde o Holocausto",
hoje vive em Washington, onde
trabalha para o American Enterprise Institute, que pesquisa
questões políticas, sociais e
econômicas. Recentemente
perdeu o direito à proteção que
tinha do governo holandês. Na
semana passada, a autora cancelou sua vinda ao Brasil, onde
lançaria sua autobiografia, "Infiel" (Cia. das Letras; R$ 49, 504
págs.). Em entrevista à Folha,
por e-mail, Hirsi Ali justificou
o cancelamento dizendo apenas: "Minha segurança é algo
que não posso discutir. Desculpe-me". Leia trechos a seguir.
FOLHA - Quem é o leitor de "Infiel"?
AYAAN HIRSI ALI - Meu público é
qualquer mulher que esteja
preocupada e atenta com o que
está acontecendo no mundo. E
que sinta que nossa agenda comum transcende fronteiras, religiões, culturas etc. Trata-se do
relato das duas vidas que vivi.
Minha vida como uma jovem
africana numa família muçulmana devota, num sistema de
clã e tribal, foi muito diferente
da minha vida no Ocidente. Este livro narra minha jornada do
obsoleto para o moderno, do
caos e superstição para a paz,
oportunidade e iluminação.
Queria mostrar que no Ocidente é possível, mesmo vindo de
onde vim, tornar-se alguém se
você aceita a lei, sem medo de
reação da família, clã ou tribo.
FOLHA - Num artigo, o jornal "New
York Times" disse que você tem
uma visão idealizada do Ocidente...
HIRSI ALI - Eu vivo no Ocidente
há 14 anos. Você não idealiza
uma realidade da qual participa
diariamente. No Ocidente, como uma mulher, eu tenho acesso à educação e independência
financeira. Posso escolher meu
próprio companheiro e amigos,
posso votar e participar do governo. Há coisas no Ocidente
que acho injustas. Ver uma idosa comendo algo do lixo em Nova York é um escândalo para
mim. É também escandaloso
que haja pessoas pobres vivendo nesses países ricos, sem casa, comida ou tratamento de
saúde. Diferentemente de onde
eu vim, entretanto, o Ocidente
é unido no propósito de aliviar
os pobres, tanto num nível local
quanto global. Nós não temos
isso de onde eu vim. Lá, se você
é esperto, rouba dos vizinhos.
FOLHA - Por que você se mudou para os EUA e como vê a crítica à sua
entrada na AEI, considerado um laboratório do pensamento conservador americano, alinhado a Bush?
HIRSI ALI - Vim para os EUA no
ano passado quando meus vizinhos na Holanda conseguiram
que eu saísse de casa, com uma
ordem judicial, alegando que
não se sentiam seguros perto
de mim. Isso coincidiu com a
decisão do Ministério da Imigração holandês de revogar minha cidadania. Eu já não era deputada, não tinha casa, e a AEI
me fez o convite à época.
Ao contrário das nações européias, a América é um conceito. De vida, liberdade e busca
por felicidade. Nos EUA, se você compartilha os valores de liberdade, capitalismo e oportunidade, você é americano. Nesse contexto, as motivações de
Bush para invadir o Afeganistão ou Iraque são baseados na
sua crença de salvaguardar as
liberdades que fundamentam o
país. Ele não saiu em busca de
punição, e sim de liberdade.
FOLHA - Falando em princípios, você ainda valoriza os muçulmanos, de
sua educação original?
HIRSI ALI - Caridade, hospitalidade, respeito aos pais, cuidado
com o próximo, tudo isso.
FOLHA - Acredita, então, que há
uma má interpretação do Alcorão
por parte de líderes radicais?
HIRSI ALI - Não, ele é violento
em seu cerne e antiocidental. O
Alcorão foi criado no século 8.
Àquela época, o próprio Ocidente era violento, retrógrado e
ignorante. Quando nos referimos hoje ao Ocidente, pensamos em democracias livres e liberais, mas este é um Ocidente
diferente daquele que os muçulmanos conheceram no século 8. Os líderes radicais muçulmanos não estão interpretando erroneamente o Alcorão.
Não é esse o problema. O problema é que eles querem nos levar de volta ao século 8. Qualquer um pode ler as leis islâmicas referentes às mulheres, aos
judeus, infiéis e descrentes. Podemos ler o que deve ser feito
àqueles que abandonam a fé,
cometem adultério. A violência
está lá, bem explícita. Toda essa
questão da interpretação tem
origem nos muçulmanos que
querem ser bons muçulmanos,
que querem acreditar e ter fé e
não querem ver sua religião
inspirando violência. É esse
grupo que diz que o Alcorão é
mal interpretado. Mas isso não
é verdade.
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