São Paulo, sábado, 03 de novembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Refugiada somali narra suas duas vidas

Em "Infiel", que já está na lista dos mais vendidos, Ayaan Hirsi Ali fala de sua jornada do berço muçulmano ao Ocidente

Ex-deputada na Holanda, Hirsi Ali perdeu cidadania do país, vive nos EUA e defende que o Alcorão é violento por essência

EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL

A somali Ayaan Hirsi Ali, 37, é uma mulher cercada de polêmicas. Refugiada na Holanda, onde se tornou deputada, a ferrenha crítica do islamismo, sua religião de berço, denunciou a prática da circuncisão feminina na Somália -a que ela mesma foi submetida, aos cinco anos, numa cerimônia feita pela avó.
Co-roteirista do filme "Submissão", sobre a opressão às mulheres nas culturas islâmicas, Hirsi Ali teve de deixar o país depois que o diretor, Theo van Gogh, foi assassinado, em 2004, por um radical islamista.
No corpo de Van Gogh, o assassino pregou uma carta dizendo que a próxima vítima seria ela.
Hirsi Ali, a quem o escritor Salman Rushdie chamou de "primeira refugiada da Europa Ocidental desde o Holocausto", hoje vive em Washington, onde trabalha para o American Enterprise Institute, que pesquisa questões políticas, sociais e econômicas. Recentemente perdeu o direito à proteção que tinha do governo holandês. Na semana passada, a autora cancelou sua vinda ao Brasil, onde lançaria sua autobiografia, "Infiel" (Cia. das Letras; R$ 49, 504 págs.). Em entrevista à Folha, por e-mail, Hirsi Ali justificou o cancelamento dizendo apenas: "Minha segurança é algo que não posso discutir. Desculpe-me". Leia trechos a seguir.

 

FOLHA - Quem é o leitor de "Infiel"?
AYAAN HIRSI ALI
- Meu público é qualquer mulher que esteja preocupada e atenta com o que está acontecendo no mundo. E que sinta que nossa agenda comum transcende fronteiras, religiões, culturas etc. Trata-se do relato das duas vidas que vivi.
Minha vida como uma jovem africana numa família muçulmana devota, num sistema de clã e tribal, foi muito diferente da minha vida no Ocidente. Este livro narra minha jornada do obsoleto para o moderno, do caos e superstição para a paz, oportunidade e iluminação. Queria mostrar que no Ocidente é possível, mesmo vindo de onde vim, tornar-se alguém se você aceita a lei, sem medo de reação da família, clã ou tribo.

FOLHA - Num artigo, o jornal "New York Times" disse que você tem uma visão idealizada do Ocidente...
HIRSI ALI
- Eu vivo no Ocidente há 14 anos. Você não idealiza uma realidade da qual participa diariamente. No Ocidente, como uma mulher, eu tenho acesso à educação e independência financeira. Posso escolher meu próprio companheiro e amigos, posso votar e participar do governo. Há coisas no Ocidente que acho injustas. Ver uma idosa comendo algo do lixo em Nova York é um escândalo para mim. É também escandaloso que haja pessoas pobres vivendo nesses países ricos, sem casa, comida ou tratamento de saúde. Diferentemente de onde eu vim, entretanto, o Ocidente é unido no propósito de aliviar os pobres, tanto num nível local quanto global. Nós não temos isso de onde eu vim. Lá, se você é esperto, rouba dos vizinhos.

FOLHA - Por que você se mudou para os EUA e como vê a crítica à sua entrada na AEI, considerado um laboratório do pensamento conservador americano, alinhado a Bush?
HIRSI ALI
- Vim para os EUA no ano passado quando meus vizinhos na Holanda conseguiram que eu saísse de casa, com uma ordem judicial, alegando que não se sentiam seguros perto de mim. Isso coincidiu com a decisão do Ministério da Imigração holandês de revogar minha cidadania. Eu já não era deputada, não tinha casa, e a AEI me fez o convite à época.
Ao contrário das nações européias, a América é um conceito. De vida, liberdade e busca por felicidade. Nos EUA, se você compartilha os valores de liberdade, capitalismo e oportunidade, você é americano. Nesse contexto, as motivações de Bush para invadir o Afeganistão ou Iraque são baseados na sua crença de salvaguardar as liberdades que fundamentam o país. Ele não saiu em busca de punição, e sim de liberdade.

FOLHA - Falando em princípios, você ainda valoriza os muçulmanos, de sua educação original?
HIRSI ALI
- Caridade, hospitalidade, respeito aos pais, cuidado com o próximo, tudo isso.

FOLHA - Acredita, então, que há uma má interpretação do Alcorão por parte de líderes radicais?
HIRSI ALI
- Não, ele é violento em seu cerne e antiocidental. O Alcorão foi criado no século 8. Àquela época, o próprio Ocidente era violento, retrógrado e ignorante. Quando nos referimos hoje ao Ocidente, pensamos em democracias livres e liberais, mas este é um Ocidente diferente daquele que os muçulmanos conheceram no século 8. Os líderes radicais muçulmanos não estão interpretando erroneamente o Alcorão. Não é esse o problema. O problema é que eles querem nos levar de volta ao século 8. Qualquer um pode ler as leis islâmicas referentes às mulheres, aos judeus, infiéis e descrentes. Podemos ler o que deve ser feito àqueles que abandonam a fé, cometem adultério. A violência está lá, bem explícita. Toda essa questão da interpretação tem origem nos muçulmanos que querem ser bons muçulmanos, que querem acreditar e ter fé e não querem ver sua religião inspirando violência. É esse grupo que diz que o Alcorão é mal interpretado. Mas isso não é verdade.


Texto Anterior: Manuel da Costa Pinto: Wittgenstein e a promessa de felicidade
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.