São Paulo, Sexta-feira, 03 de Dezembro de 1999


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GASTRONOMIA
O prratô da senhorrá estavá bom?

NINA HORTA
Colunista da Folha

Todo mundo se lembra do fenômeno Carla Perez. Dançava bem, rebolava com toda a garra e bunda que Deus lhe deu, jovem, divertida, alegre.
Depois apareceu o primeiro clone. Depois o segundo, o terceiro, o milionésimo. De repente a TV estava forrada de "carlas" de todas as cores, imitando o sorriso, o cabelo, o short, rebolando de quebrar a cintura. Elas próprias matando a primeira "carla", a galinha dos ovos de ouro, e se suicidando devagarinho, é o que esperamos.
Mas o que tem o tchan a ver com restaurantes?
Tudo.
Meus gulosos leitores. O que aconteceu? A "nouvelle cuisine", ou a suposta nova cozinha, com sua delicada estética de pratos, seus ingredientes tenros, está rodando sobre si mesma, num pé só, prestes a cair de tonta, vítima de seu próprio rebolado.
Vejamos: aquela couve que vem em pirâmide no prato, sustentando o filé, ao lado do purê de mandioquinha. Está feita segundo a ciência mineira? Foi cortada bem fina, temperada com sal antes de ser assustada na frigideira, ou está lá no prato como enfeite, só para levantá-lo, é grossa e aferventada?
A técnica do bem fazer a comida acompanhou a revolução?
Eu, ferrenha adepta da "nouvelle cuisine", estou pelas tampas de suas sequelas. Também não sei o que fazer, com medo de, ao jogar fora a água do banho, jogar a criança junto. O que se aproveitar? Pelo menos um princípio básico: o bom ingrediente, mexendo-se pouco com ele.
Andei agora por estes brasis, frequentando o que se costuma chamar de ótimos restaurantes. Comi do bom e do melhor, pelo menos o que se considera o bom e o melhor, e me deu um tédio, uma sensação de déjà vu, uma preguiça mortal. Mas, passeando pela praia, lembrei-me de um filé de pescada frito na hora, passado na farinha de trigo, com batatas cozidas, simples, que é servido nos bares de praia. De umas sardinhas assadas de botequins. De uns bacalhaus. De umas coxinhas e empadinhas. Do arroz com feijão preto. E me deu saudade.
Comi piccata d'aiguillette baronne de veau a la crème de foie gras. Pannequet de saumon fumé farci de son tartare de saumon frais aux herbes, uma delícia. O chef era francês e falava carregando nas sílabas finais. "O prratô da senhorrá estavá bom?" Francês com sotaque fala assim? Não fala. Isto é pronúncia do Ronald Golias. Francês com sotaque engole as sílabas finais. "U prrát da sinhór estav bon?" Suspeito que ele já deve estar brasileiro da gema, mas precisa falar francês para gozar a fama. Suspeitas, suspeitas, nada mais que suspeitas.
Em todo o caso, vou tomar minhas providências caseiras. Dar umas férias de seis meses àqueles anéis de alumínio de PVC que se usam para moldar a comida no meio do prato e chamá-la de terrine. Fora. Férias para os fígados, framboesas, vinagres exóticos, noix de St. Jacques, abacate com jerimum, todo e qualquer tempero que mascare o gosto original.
Ao diabo aquele delicioso pudinzinho de chocolate quente, pois que os revolucionários devem ser radicais. Não vai ser sem lágrimas e decaídas que deixo de lado o crême brulée de um belo e paulistano chef francês. Abaixo a sopa gelada de frutas vermelhas. Por um tempo. Férias.
Vou começar com um arroz branco solto e vou adicionando acompanhamentos. Ovo frito, por exemplo. Feijoada, não abro mão. Voltemos às tortas, com extremo cuidado, dosando o palmito, o camarão e o frango, deixando-os cremosos para que não se pareçam com terrines. Um belo bife com batatas fritas ainda é um teste para o bom cozinheiro, banindo o chutney de manga e funcho por baixo. Comida japonesa pode continuar na sua singeleza complicada. Aliás, todas as etnias têm seu lugar firme, só não vamos misturá-las ao deus-dará.
Na realidade, estou clamando para que os bons cozinheiros continuem fazendo o que quiserem, como quiserem, que sempre terão nossa fome. Acontece que eles são poucos. Enquanto não nos infundem sua sabedoria, chega de clonar, de imitar, de rebolar sem ter bunda graciosa, entenderam? No mais, vamos continuar fazendo o que sabemos fazer bem, hélas, experimentando devagarinho, até alcançarmos a perfeição cuidadosa, seja com o tambaqui ou o salmão...

E-mail: ninahort@uol.com.br


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