São Paulo, Sexta-feira, 03 de Dezembro de 1999


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CARLOS HEITOR CONY
Curiosa história do menino trocado no berço

Contei esta história há tempos, numa coluna da segunda página, e muitos leitores, sobretudo leitoras, me escreveram perguntando se era verdade. O Mário Prata, em livro recente, contou-a a seu modo, e é natural que eu a conte a meu modo e com mais detalhes, uma vez que, além de mais interessado do que o Mário, o personagem principal sou eu mesmo. Vamos a ela.
Eu tinha meses, para ser exato, dois meses de vida. Era um bebê gordo, preguiçoso e sonolento. Dormia o tempo todo, criava pouquíssimos casos. Minha mãe fora à cidade, deixou-me aos cuidados da irmã dela, que era moça, noiva de um poeta de Barra do Piraí. Mas havia no pedaço um viúvo que estava a fim, e o coração de tia Zulmira balançava entre o poeta sem futuro e o sólido viúvo, que era funcionário graduado da Central do Brasil.
Zulmira estava à janela, que funcionava mais ou menos como a TV daquele tempo. Via a programação da tarde, que devia ser como a de hoje, para o público feminino que fica bestando entre o almoço e o jantar. Nisso passaram duas ciganas, uma delas com um filho pequenino ao colo. Fazia calor e elas pediram um copo com água. Em paga, leriam a mão da minha tia.
Não custava nada. Ela foi à copa, trouxe a gorda moringa de barro com água fresca e estendeu a mão para ser lida. Uma das ciganas ficou preocupada. Viu coisas terríveis naquelas linhas e desejou se aprofundar no futuro da moça. Pediu então pó de café, para com ele marcar melhor as linhas da mão.
Tia Zulmira voltou à copa, trouxe o pó de café, a cigana esparramou o pó pela mão dela e descobriu que minha tia se casaria com o viúvo -o que de fato aconteceu.
Pediram ainda uns trocados, beberam mais água e foram embora. Zulmira voltou à janela emocionada, afinal ela se casaria com o homem que gostava. E, quando minha mãe chegou, foi logo contando a novidade. Mas não chegou a contá-la toda. Apavorada, minha mãe deu um grito: "Onde está o Tutuquinha?". Para quem não sabe, o Tutuquinha era eu, o apelido fora me dado à revelia.
Zulmira mostrou o berço: "Está aí, não chorou nem nada, é um santinho!". Minha mãe agarrou o bebê e exibiu-o à irmã: "Isto não é o meu filho! Olhe só, esse monstro! Meu filho é um anjo, o que foi feito dele?".
As ciganas haviam levado o Tutuquinha, filho de minha mãe, e deixado no berço um bebê hediondo, cor de cobre, faminto e feio.
Quando o pai chegou, ainda tentou consertar as coisas, mas os ciganos, naquele tempo, tinham o dom da ubiquidade, apareciam e desapareciam sem deixar rastros. Uma semana depois, estavam todos conformados com a troca.
Quem nunca se conformou fui eu próprio. Todo homem tem direito às dúvidas. Sábios e loucos, santos e pecadores, todos cultivam as mesmas perplexidades (de onde vim, quem sou eu, para onde vou etc.). Como se não bastassem essas dúvidas as quais todos têm direito, eu tenho cá outro tipo de dúvida mais estúpida e cruel: a de não ser eu mesmo.
Meus pais se resignaram, afinal, o berço não ficara vazio. De minha parte, até hoje não me resignei. Cresci não sendo eu e acho que fui mudo até os 5 anos em sinal de protesto. Que diabo, eu não era eu, podia ser um outro menino, menos encabulado, menos abominável.
Lembro que, aos 5 anos, o pai colocou na vitrola uma das "Danças Húngaras", de Liszt, e eu guardei aquela música como um alumbramento, até hoje lembro da emoção com que, debaixo da mesa, a ouvi - meu lugar preferido era sob a mesa, meu ponto de observação do mundo e da humanidade que me rodeava.
Corrompi-me aos poucos, mas com notáveis progressos. Após a fase adulta, comecei a me preocupar comigo mesmo, ou seja, com aquele Tutuquinha que era eu e que andava pelo mundo fazendo sei lá o quê. Seria feliz? Estaria na cadeia? Ou vendendo utensílios de cobre ao longo das estradas? Teria se casado com uma cigana bonita, de seios enormes e ancas sensuais? Teria sido morto numa briga por causa de mulher? Ou teria matado pelo mesmo e bastante motivo?
Durante anos, sempre que esbarrava com um cigano, eu o examinava com atenção: eu podia estar diante de mim mesmo.
Em Praga, no ano de 1968, passei umas semanas esperando o avião que me levaria a Havana. Manhã de domingo, junto àquela sinagoga ao lado do velho cemitério dos judeus, vi uns ciganos em festa.
Cantavam uma canção cigana que eu aprendera por aí: "Minha pátria, do norte ao sul, é um teto vasto, um céu azul". Já que cantavam em português, perguntei se eram brasileiros. Eram. Um dos ciganos me olhou com raiva, eu invadira o seu território, profanara a alegria deles.
Tinha a minha idade. Eu o encarei. Por um momento nos odiamos. Temendo a briga, uma jovem cigana, de olhos negros e mortíferos, levou-o para longe. Tenho a suspeita de que foi a única vez que realmente olhei para mim mesmo.


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