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CARLOS HEITOR CONY
Curiosa história do menino trocado no berço
Contei esta história há tempos,
numa coluna da segunda página,
e muitos leitores, sobretudo leitoras, me escreveram perguntando
se era verdade. O Mário Prata, em
livro recente, contou-a a seu modo, e é natural que eu a conte a
meu modo e com mais detalhes,
uma vez que, além de mais interessado do que o Mário, o personagem principal sou eu mesmo.
Vamos a ela.
Eu tinha meses, para ser exato,
dois meses de vida. Era um bebê
gordo, preguiçoso e sonolento.
Dormia o tempo todo, criava pouquíssimos casos. Minha mãe fora
à cidade, deixou-me aos cuidados
da irmã dela, que era moça, noiva
de um poeta de Barra do Piraí.
Mas havia no pedaço um viúvo
que estava a fim, e o coração de
tia Zulmira balançava entre o
poeta sem futuro e o sólido viúvo,
que era funcionário graduado da
Central do Brasil.
Zulmira estava à janela, que
funcionava mais ou menos como
a TV daquele tempo. Via a programação da tarde, que devia ser
como a de hoje, para o público feminino que fica bestando entre o
almoço e o jantar. Nisso passaram
duas ciganas, uma delas com um
filho pequenino ao colo. Fazia calor e elas pediram um copo com
água. Em paga, leriam a mão da
minha tia.
Não custava nada. Ela foi à copa, trouxe a gorda moringa de
barro com água fresca e estendeu
a mão para ser lida. Uma das ciganas ficou preocupada. Viu coisas terríveis naquelas linhas e desejou se aprofundar no futuro da
moça. Pediu então pó de café, para com ele marcar melhor as linhas da mão.
Tia Zulmira voltou à copa, trouxe o pó de café, a cigana esparramou o pó pela mão dela e descobriu que minha tia se casaria com
o viúvo -o que de fato aconteceu.
Pediram ainda uns trocados,
beberam mais água e foram embora. Zulmira voltou à janela
emocionada, afinal ela se casaria
com o homem que gostava. E,
quando minha mãe chegou, foi
logo contando a novidade. Mas
não chegou a contá-la toda. Apavorada, minha mãe deu um grito:
"Onde está o Tutuquinha?". Para
quem não sabe, o Tutuquinha era
eu, o apelido fora me dado à revelia.
Zulmira mostrou o berço: "Está
aí, não chorou nem nada, é um
santinho!". Minha mãe agarrou o
bebê e exibiu-o à irmã: "Isto não é
o meu filho! Olhe só, esse monstro!
Meu filho é um anjo, o que foi feito dele?".
As ciganas haviam levado o Tutuquinha, filho de minha mãe, e
deixado no berço um bebê hediondo, cor de cobre, faminto e
feio.
Quando o pai chegou, ainda
tentou consertar as coisas, mas os
ciganos, naquele tempo, tinham o
dom da ubiquidade, apareciam e
desapareciam sem deixar rastros.
Uma semana depois, estavam todos conformados com a troca.
Quem nunca se conformou fui
eu próprio. Todo homem tem direito às dúvidas. Sábios e loucos,
santos e pecadores, todos cultivam as mesmas perplexidades (de
onde vim, quem sou eu, para onde
vou etc.). Como se não bastassem
essas dúvidas as quais todos têm
direito, eu tenho cá outro tipo de
dúvida mais estúpida e cruel: a de
não ser eu mesmo.
Meus pais se resignaram, afinal,
o berço não ficara vazio. De minha parte, até hoje não me resignei. Cresci não sendo eu e acho
que fui mudo até os 5 anos em sinal de protesto. Que diabo, eu não
era eu, podia ser um outro menino, menos encabulado, menos
abominável.
Lembro que, aos 5 anos, o pai
colocou na vitrola uma das "Danças Húngaras", de Liszt, e eu
guardei aquela música como um
alumbramento, até hoje lembro
da emoção com que, debaixo da
mesa, a ouvi - meu lugar preferido era sob a mesa, meu ponto de
observação do mundo e da humanidade que me rodeava.
Corrompi-me aos poucos, mas
com notáveis progressos. Após a
fase adulta, comecei a me preocupar comigo mesmo, ou seja, com
aquele Tutuquinha que era eu e
que andava pelo mundo fazendo
sei lá o quê. Seria feliz? Estaria na
cadeia? Ou vendendo utensílios
de cobre ao longo das estradas?
Teria se casado com uma cigana
bonita, de seios enormes e ancas
sensuais? Teria sido morto numa
briga por causa de mulher? Ou teria matado pelo mesmo e bastante motivo?
Durante anos, sempre que esbarrava com um cigano, eu o examinava com atenção: eu podia estar diante de mim mesmo.
Em Praga, no ano de 1968, passei umas semanas esperando o
avião que me levaria a Havana.
Manhã de domingo, junto àquela
sinagoga ao lado do velho cemitério dos judeus, vi uns ciganos em
festa.
Cantavam uma canção cigana
que eu aprendera por aí: "Minha
pátria, do norte ao sul, é um teto
vasto, um céu azul". Já que cantavam em português, perguntei se
eram brasileiros. Eram. Um dos
ciganos me olhou com raiva, eu
invadira o seu território, profanara a alegria deles.
Tinha a minha idade. Eu o encarei. Por um momento nos odiamos. Temendo a briga, uma jovem cigana, de olhos negros e
mortíferos, levou-o para longe.
Tenho a suspeita de que foi a única vez que realmente olhei para
mim mesmo.
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