São Paulo, Sexta-feira, 03 de Dezembro de 1999


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ARTIGO
Na tela, uma mina e um cano

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Em um livro clássico sobre a comunicação de massa, o arguto sociólogo francês Edgar Morin sintetizou o cinema roliudiano pelo binômio, escrito em inglês: "A film is a girl and gun". Traduzindo: "Um filme é uma guria e um revólver".
Na gíria de São Paulo, a receita para um filme de sucesso é a fórmula "Uma mina e um cano". Ou seja: mulher (de preferência peladona) e tiro. A indústria pornô. Sangue e pistola.
O binômio "girl-gun" reaparecerá em todos os filmes destinados a explorar o gosto da massa seduzida pela violência imprescindível ao "bad movie" comercial. Sem esquecer aquele detalhe de que o treisoitão, segundo a psicanálise, funciona como símbolo fálico: o revólver seria uma alusão ou um substituto do pênis.
No cinema são os homens que filmam as mulheres. Recentemente o cineasta Jean-Luc Godard filmou e, ao mesmo tempo, escreveu "História do Cinema". O velho Godard, "god" em Nova York, mostra que o cinema está baseado no sexo e na morte, a condição do homem mortal e sexual.
Eu me lembro de um texto do filósofo Hegel, que não chegou a conhecer o cinema, dizendo que a invenção da arma de fogo mudara a concepção universal da morte.
Quando se diz revólver é comum associá-lo à mão que puxa o gatilho.
A mão que afaga é a mesma que apedreja, segundo o poeta punk Augusto dos Anjos.
Não é por acaso que na história do cinema a mão ganha sempre destaque.
A mão de John Wayne. A mão de Elizabeth Taylor. A mão de Hitler. Dir-se-ia que o cinema é a história da mão. Afinal, a mão é fundamental na montagem cinematográfica, conforme a foto famosa do cineasta russo Eisenstein; de resto, é possível identificar se determinada pessoa é cineasta pelo modo de gesticular as mãos.
Hoje o binômio cinematográfico "girl-gun" não se faz com o revólver de Humphrey Bogart nem com a espingarda papagaio amarelo de Maurício do Vale no sertão setentrional dos Brasis. O dispositivo técnico e fetichista da violência reacionária atingiu o zênite com os efeitos especiais da "metralhadora xuazinéguer".
Curiosamente, no cinema americano de massa, é cada vez maior a ênfase visual na arma de fogo, enquanto assistimos atualmente ao desencadear da guerra invisível, como foi o caso da Guerra do Golfo, o videogame bélico do dólar com petróleo.
À Internet, caberá a função ideológica de fazer esquecer o extermínio.


Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo), entre outros


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