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São Paulo, quarta-feira, 03 de dezembro de 2003

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MÚSICA ERUDITA

E afinal era só uma boneca de olhos de esmalte

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"É ridículo: ninguém se apaixona por uma boneca!" Assim dizia um senhor mal-humorado, no intervalo dos "Contos de Hoffmann", que teve sua estréia sábado no Municipal. A frase é uma estultice, mas merece ser citada porque serve involuntariamente de espelho para verdades antigas da música de Offenbach (1819-80), bem como para a nova e brilhante montagem de Jorge Takla, com a Orquestra Experimental de Repertório regida por Jamil Maluf.
É no ato 2 que o poeta Hoffmann se apaixona pela boneca Olympia -primeiro estágio de sua educação sentimental, como recriada engenhosamente no libreto (de Jules Barbier), a partir de alguns "contos fantásticos" do próprio escritor romântico alemão. A fonte ali é "O Homem da Areia", talvez o mais famoso de todos, depois da leitura de Freud. O que Freud chamava de "o estranho" se cruza nessa história com a paixão amorosa, alegorizada no olho mecânico; já na ópera isso ganha outro sentido, porque o órgão da paixão é o ouvido.
Estranha verdade: uma sequência de notas pode transformar um homem. Não só o tenor Fernando Portari, encarnando Hoffmann com seu costumeiro brio e fluência. Mas também as 1.500 pessoas que lotavam o teatro e que se apaixonaram coletivamente pela soprano Andrea Ferreira.
A ovação de mais de um minuto, interrompendo a cena depois da "ária de Olympia", foi um tributo espontâneo e feliz. Ferreira encontrou um meio-termo raro entre a rigidez mecânica dos gestos e o canto, que encontra outro canto dentro de si. Foi cômica e freudianamente "estranha": só um surdo não cairia pela boneca. E os figurinos (Mira Haar) e cenários (Takla), passando da elegância "cool" do verde-Prada às alegrias multicoloridas no balé dos autômatos, davam concretude ao que já estava dramatizado na voz da nossa diva.
A partir daí, ficou mais fácil inclusive aceitar o artificialismo da encenação. Em particular nos diálogos -em português, contrastando com a música cantada em francês-, a dramaturgia tende a cair nos tiques de TV. Mas não é disso, afinal, que se trata? A própria música de Offenbach não é feita, em boa parte, de efeitos comuns? E não é isso mesmo que se vê refletido nos mil espelhos e janelas do cenário? Ou em casa?
A diferença, claro, é que em casa não tem Cláudia Ricitelli no papel de Antônia, nem Luciana Bueno no da cortesã. A primeira já entrou para aquela categoria dos artistas sobre quem não resta mais qualquer dúvida. Ferreira esbanja a espoleta divina; Cláudia Ricitelli é outro tipo de deusa, serena até no desespero.
Do verde e laranja do ato 2, passou-se aqui ao azul (figurinos de Attílio Baschera). No ato 4, seria a vez do vermelho, no cabaré veneziano (figurinos de Elena Montanarini). No meio do vermelho, um "smoking", o Schlemil do barítono Sebastião Teixeira. E o preto sexy de Giulietta, que a sempre sexy Luciana Bueno dramatizou com requintes de malícia. O poeta parecia um menino, ao lado dessa loba. E a loba canta!
Nessa hora, nem o bom conselheiro teria alguma chance de diálogo. E olha que era Denise de Freitas, dobrando de Musa e Niklausse. A meio-soprano é outra glória nessa constelação de bons cantores brasileiros reunidos pelo maestro Maluf, que incluem Lício Bruno, excelente nas várias versões do diabo (Coppélius, Dr. Miracle etc.), Luciano Botelho (contraparte cômico), Pepes do Valle, Magda Painno, Paulo Queiroz, Leonardo Pace e Walter Felippe-Fawcett, sem falar no Coral Lírico.
A ópera é longa, a vida é curta, mas passam depressa, e a gente nem sente. Tanta coisa para lembrar: o trio dos óculos, a barcarola tecno, a ária do fantasma da mãe. Esplendores e desastres do coração, traduzidos em comédia, mas também em melodrama, no sentido literal da palavra: teatro da melodia. E todo mundo, afinal, sai do teatro de alma leve. Mistérios da música, comédias do enigma, que se desfaz e refaz aos olhos de quem ouve esses bonecos.


Contos de Hoffmann
     Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de Azevedo, s/nš, São Paulo, tel. 0/xx/11/ 222-8698) Quando: hoje e sexta, às 20h; domingo, às 17h Quanto: de R$ 15 a R$ 100



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