São Paulo, sábado, 04 de janeiro de 2003

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INÉDITOS

O clássico "O Mensageiro", escrito pelo britânico Leslie Poles Hartley e adaptado para o cinema em 1971, ganha agora tradução para o português, 50 anos depois de sua publicação

Tempo estrangeiro

Leia abaixo um trecho do romance "O Mensageiro" ("The Go-Between"), do britânico L.P. Hartley (1895-1972). Publicado em 1953, o livro foi adaptado para o cinema pelo dramaturgo Harold Pinter e chegou às telas dirigido por Joseph Losey em 1971.
A carreira de sucesso do longa conta com uma premiação no Festival de Cannes de 1971, onde levou o Grande Prêmio Internacional. No elenco, estão os atores Alan Bates (que interpreta Ted Burgess), Julie Christie (Marian), Margaret Leighton (sra. Maudsley) e Michael Redgrave (Leo Colston com mais de 60 anos).
Essa edição de "O Mensageiro", que será lançada este mês pela Nova Alexandria, é a primeira tradução da obra para o português.
 
Estavam todos ao chá quando cheguei. Senti que havia estado longe por meses, tão diferente era a atmosfera e tão alheia a experiência pela qual passara. À visão de meu joelho, eles se derramaram em condescendências e eu contei-lhes como Ted Burgess havia sido gentil.
-Ah, o sujeito da fazenda Black -disse o sr. Maudsley. Grande sujeito, cavalga bem, ouvi dizer.
-Ele é o homem que eu quero ver -disse lorde Trimingham- Espero que vá jogar na partida de sábado. Quer dizer então que você teve uma conversa com ele.
Fiquei imaginando se Ted Burgess havia se metido em apuros; olhei para Marian, esperando que fizesse algum comentário, mas ela parecia não ter ouvido: seu rosto tinha o duro e aquilino aspecto que mostrava às vezes. Eu podia ouvir a carta farfalhando em meu bolso e imaginava se alguém poderia notar. Subitamente, ela se levantou e disse:
-Acho que é melhor eu cuidar desse joelho para você, Leo. Está parecendo um pouco sujo.
Contente por sair dali, eu a segui. Ela foi para o banheiro; era o único, acho, em toda a casa. Nunca o havia visto antes: Marcus e eu tínhamos uma tina para nos lavarmos em nosso quarto.
-Fique aqui -ela ordenou-, vou procurar outra bandagem para você.
Era um grande aposento com o que me pareceu desnecessário, um lavatório; mas por que as pessoas iriam querer uma banheira e também um lavatório? A banheira era envolta em mogno e tinha um tampo também de mogno. Parecia uma tumba. Quando ela voltou, ergueu o tampo e me fez sentar na borda da banheira enquanto tirava meu sapato e minha meia, como se não soubesse que eu era velho o bastante para fazer isso sozinho.
-Agora, ponha seu joelho sob a torneira -disse.
A água escorria pela minha perna deliciosamente fresca.
-Meu Deus -disse ela-, você levou mesmo um tombo.
Mas, para minha surpresa, não disse nada sobre Ted Burgess até quase o final, depois de ter colocado a nova bandagem. A velha jazia na borda da banheira, toda amarrotada e manchada de sangue; Marian olhou para ela e disse:
-Esse lenço é dele?
-Sim -falei. Ele disse que não ia querê-lo de volta, então posso jogá-lo fora? Sei onde fica o lixo -Não era oficiosidade, queria poupá-la do trabalho. E eu acolhia com prazer a chance de voltar a visitar o lixo, aquele grato toque de imundície em toda a magnificência.
-Oh, talvez eu o lave -disse ela-, parece ser um lenço muito bom.
Então lembrei-me da carta, que havia mantido esquecida, pois enquanto estava com Marian só pensava nela.
-Ele me pediu para lhe entregar isso -falei, puxando a carta do bolso. Parece que está bem amassada.
Ela quase arrancou-a de minha mão e depois olhou em torno procurando um lugar para pô-la.
-Oh, estes vestidos! Espere um momento -disse, e desapareceu levando consigo a carta e o lenço. Um momento depois, voltou e disse:
-Agora, que tal a bandagem?
-Mas você já colocou -falei, mostrando meu joelho.
-Valha-me Deus, é mesmo. Agora, vou calçar sua meia.
Protestei; mas não, ela própria queria fazer isso e não pude dizer que me incomodava.
-Há uma resposta para a carta? -perguntei, desapontado de que ela a tivesse tomado tão ligeiramente. Mas ela apenas balançou a cabeça. -Você não deve falar a ninguém sobre essa... carta -disse, desviando os olhos de mim-; absolutamente ninguém, nem mesmo Marcus.
Fiquei um tanto aborrecido com tantas injunções por segredo. Os adultos pareciam não perceber que, para mim, assim como para a maioria dos outros colegiais, era mais fácil manter silêncio do que falar. Eu era uma ostra genuína. Assegurei a Marian novamente de que seu segredo estava bem seguro comigo. Com paciência, expliquei que de qualquer maneira não poderia contar a Marcus, porque ele estava de cama e eu não podia vê-lo.
-É claro que ele está -falou ela-, parece que eu esqueço tudo. Mas você não deve soltar uma palavra, eu ficaria terrivelmente zangada com você se o fizesse.
Então, vendo que eu parecia muito magoado e a ponto de chorar, enterneceu-se e disse:
-Oh, não, eu não ficaria, mas veja que isso colocaria nós todos no mais terrível apuro.



A OBRA
"O Mensageiro"

Autor: L.P. Hartley
Tradutor: Paulo Cezar de Mello
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 33 (248 págs.)



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