São Paulo, sábado, 04 de janeiro de 2003

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CRÍTICA

Prosa algo antiquada de Hartley envolve com longo véu de sugestões e implicações

"O passado é um país estrangeiro: lá, as coisas são feitas de maneira diferente."
"O Mensageiro", L.P. Hartley

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Há romances para ler de conta-gotas; outros, de colherada. Este último é o caso de "O Mensageiro", elogiadíssima ficção do escritor britânico L.P. Hartley, que ganhou as telas na batuta de Joseph Losey em 1971 e só agora, 50 anos após sua publicação, é traduzida no Brasil.
Essa "obra-prima da inocência perdida", como foi definida pelo jornal inglês "The Guardian", apresenta de fato camadas de sentido sutilmente armadas que, apesar da prosa formal e algo antiquada, nos envolve com seu longo véu de sugestões e implicações, animando-nos a abocanhar pedaços cada vez maiores.
A história manifesta se dá em torno de um menino de 12 para 13 anos, Leo Colston, convidado para passar as férias de verão numa suntuosa casa em Norfolk, no interior da Inglaterra, em 1900. Ali ele trava contato com pessoas de classe superior à sua e exerce papel a princípio resoluto, depois vacilante, de garoto de recados para um casal apaixonado.
Reside nesta intriga amorosa o verdadeiro motor da narrativa. Marian Maudsley, irmã do melhor amigo de Leo, tem um caso secreto com o fazendeiro Ted Burgess. A moça, porém, está prometida para o visconde Hugh Trimingham, proprietário das terras e da casa que a família dela arrendou.
Posto que banal, o entrecho romântico adquire vida ao ser visto pelo olhar parcial, ingênuo, do menino. De início, ele não desconfia do caso entre Marian e Ted. Há o agravante de Leo estar enamorado da moça e de estabelecer uma relação ambivalente, misto de admiração e raiva, com o fazendeiro. O papel do leitor está em atravessar a emaranhada teia urdida pelo ponto de vista comprometido do garoto e divisar a tragédia que se avizinha -a despeito e com o concurso bem-intencionado dele.
Hartley segue quase às últimas consequências a técnica de Henry James, a quem é comparado, de contar uma história através da perspectiva limitada de um personagem, transformando a narrativa no drama dessa consciência. Além disso, como em James, há um dilema moral cuja aparente simplicidade de luta entre bem e mal acaba se complicando quando o personagem, em seu empenho cego de fazer o bem, muitas vezes concorre para a manifestação do maior dos males.
Como a governanta de "A Volta do Parafuso" e Winterbourne de "Daisy Miller", Leo, imbuído de sua pequena moral puritana, quer o melhor para os envolvidos no drama. Mas, ao transformar seus bons propósitos em ação, provoca uma crise de remate funesto. Esquema semelhante se acha, a propósito, no romance "A Reparação", de Ian McEwan (que, ao lado de Anita Brookner e Harold Pinter, é admirador de Hartley), lançado ano passado pela Companhia das Letras.
Mas há algo bem distinto em "O Mensageiro". Temos dois narradores na história: o jovem Leo de 12 anos e o Leo de "60 e tantos anos". A narrativa é formada pelo mecanismo da memória, por aquilo que o velho Leo consegue ou não se lembrar com a auxílio de seu "eu" de 50 anos atrás. Ao contrário de James, cuja perspectiva é sempre a do presente, mesmo quando fala do passado, o retrato pintado por L.P. Hartley se tinge com as cores sépias da rememoração, de busca do tempo perdido.
Um bom exemplo disso está no comentário supostamente inocente do narrador, quando vê Marian entrar no banheiro da casa: "Era o único, acho, em toda a casa". O olhar do menino se mescla ao do velho, com uma piscadela adicional para o leitor moderno: por mais suntuosas que fossem as residências antigas, o banheiro era considerado supérfluo.
Trata-se de algo impensado em James. Seus personagens vivem uma situação contemporânea, na qual um ponto de vista como esse, de cima para baixo ou do hoje para o ontem, não se engendra. As coisas sobre as quais Hartley discorre são de um tempo que passou, o qual, por ter-se tornado "estrangeiro", carece de outros instrumentais de descrição.
"O Mensageiro" é uma excelente sugestão de leitura para o começo do ano. Apesar, é preciso dizer, de seu desfecho algo decepcionante, de seu epílogo convencional (e, do modo que foi forjado, desnecessário) e dos tropeços da tradução.
Trechos mal traduzidos, em que o vernáculo se bate com o texto original, como "estava machucado por todo o corpo", "estava secretamente terrificado" e "fui visitado por uma aguda saudade prematura", somam-se a erros flagrantes, como confundir "ingenuidade" com "engenhosidade". Só por isso a edição nacional da obra perde uma estrela.


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