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CRÍTICA
Prosa algo antiquada de Hartley envolve com longo véu de sugestões e implicações
"O passado é um país estrangeiro: lá,
as coisas são feitas de maneira diferente."
"O Mensageiro", L.P. Hartley
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Há romances para ler de
conta-gotas; outros, de colherada. Este último é o caso de
"O Mensageiro", elogiadíssima
ficção do escritor britânico L.P.
Hartley, que ganhou as telas na
batuta de Joseph Losey em 1971 e
só agora, 50 anos após sua publicação, é traduzida no Brasil.
Essa "obra-prima da inocência
perdida", como foi definida pelo
jornal inglês "The Guardian",
apresenta de fato camadas de sentido sutilmente armadas que, apesar da prosa formal e algo antiquada, nos envolve com seu longo
véu de sugestões e implicações,
animando-nos a abocanhar pedaços cada vez maiores.
A história manifesta se dá em
torno de um menino de 12 para 13
anos, Leo Colston, convidado para passar as férias de verão numa
suntuosa casa em Norfolk, no interior da Inglaterra, em 1900. Ali
ele trava contato com pessoas de
classe superior à sua e exerce papel a princípio resoluto, depois
vacilante, de garoto de recados
para um casal apaixonado.
Reside nesta intriga amorosa o
verdadeiro motor da narrativa.
Marian Maudsley, irmã do melhor amigo de Leo, tem um caso
secreto com o fazendeiro Ted
Burgess. A moça, porém, está
prometida para o visconde Hugh
Trimingham, proprietário das
terras e da casa que a família dela
arrendou.
Posto que banal, o entrecho romântico adquire vida ao ser visto
pelo olhar parcial, ingênuo, do
menino. De início, ele não desconfia do caso entre Marian e Ted.
Há o agravante de Leo estar enamorado da moça e de estabelecer
uma relação ambivalente, misto
de admiração e raiva, com o fazendeiro. O papel do leitor está
em atravessar a emaranhada teia
urdida pelo ponto de vista comprometido do garoto e divisar a
tragédia que se avizinha -a despeito e com o concurso bem-intencionado dele.
Hartley segue quase às últimas
consequências a técnica de Henry
James, a quem é comparado, de
contar uma história através da
perspectiva limitada de um personagem, transformando a narrativa no drama dessa consciência.
Além disso, como em James, há
um dilema moral cuja aparente
simplicidade de luta entre bem e
mal acaba se complicando quando o personagem, em seu empenho cego de fazer o bem, muitas
vezes concorre para a manifestação do maior dos males.
Como a governanta de "A Volta
do Parafuso" e Winterbourne de
"Daisy Miller", Leo, imbuído de
sua pequena moral puritana, quer
o melhor para os envolvidos no
drama. Mas, ao transformar seus
bons propósitos em ação, provoca uma crise de remate funesto.
Esquema semelhante se acha, a
propósito, no romance "A Reparação", de Ian McEwan (que, ao
lado de Anita Brookner e Harold
Pinter, é admirador de Hartley),
lançado ano passado pela Companhia das Letras.
Mas há algo bem distinto em "O
Mensageiro". Temos dois narradores na história: o jovem Leo de
12 anos e o Leo de "60 e tantos
anos". A narrativa é formada pelo
mecanismo da memória, por
aquilo que o velho Leo consegue
ou não se lembrar com a auxílio
de seu "eu" de 50 anos atrás. Ao
contrário de James, cuja perspectiva é sempre a do presente, mesmo quando fala do passado, o retrato pintado por L.P. Hartley se
tinge com as cores sépias da rememoração, de busca do tempo
perdido.
Um bom exemplo disso está no
comentário supostamente inocente do narrador, quando vê
Marian entrar no banheiro da casa: "Era o único, acho, em toda a
casa". O olhar do menino se mescla ao do velho, com uma piscadela adicional para o leitor moderno: por mais suntuosas que fossem as residências antigas, o banheiro era considerado supérfluo.
Trata-se de algo impensado em
James. Seus personagens vivem
uma situação contemporânea, na
qual um ponto de vista como esse,
de cima para baixo ou do hoje para o ontem, não se engendra. As
coisas sobre as quais Hartley discorre são de um tempo que passou, o qual, por ter-se tornado
"estrangeiro", carece de outros
instrumentais de descrição.
"O Mensageiro" é uma excelente sugestão de leitura para o começo do ano. Apesar, é preciso dizer, de seu desfecho algo decepcionante, de seu epílogo convencional (e, do modo que foi forjado, desnecessário) e dos tropeços
da tradução.
Trechos mal traduzidos, em que
o vernáculo se bate com o texto
original, como "estava machucado por todo o corpo", "estava secretamente terrificado" e "fui visitado por uma aguda saudade prematura", somam-se a erros flagrantes, como confundir "ingenuidade" com "engenhosidade".
Só por isso a edição nacional da
obra perde uma estrela.
Avaliação:
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