São Paulo, sábado, 04 de janeiro de 2003

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WALTER SALLES

A posse, vista por dona Zelita e dona Almerinda

Hoje é dia de festa, poderia estar cantando Elza Soares. A posse de Lula.
Em frente à televisão, dona Zelita e dona Almerinda.
Zelita Pereira Victor tem 60 anos. É cozinheira e mora à beira da rodovia Rio-São Paulo, ao lado do rio Guandu, em um território disputado pelo Comando Vermelho e pelo Terceiro Comando. O Haiti é aqui: "Tem vizinho meu que já perdeu cinco filhos nessa guerra", diz. E completa: "A vida é uma vela acesa. Basta um ventinho e acabou."
Almerinda Maria Rodrigues tem 59 anos. Nasceu ao lado do que é hoje a estrada Rio-Santos. Foi amiga de Madame Satã e caseira de Mário Peixoto. Dona Almerinda é uma das pessoas entrevistadas em "Onde a Terra Acaba", documentário de Sérgio Machado sobre o autor de "Limite". Cria um menino de nove anos, Jackson, filho de uma sobrinha.
Dona Zelita votou em Lula. Dona Almerinda não, embora tenha votado em Benedita para governadora. "Há os que vivem pela prática e os que vivem pela teoria. O Lula vive pela prática", propõe dona Zelita. "Esse homem é uma brasa acesa, com um monte de carvão em volta", arremata. Dona Almerinda concorda.
Pé em Deus, e fé na tábua. Ou melhor, o contrário: "Tenho fé em Deus em primeiro lugar, mas também tenho fé em Lula, mesmo que não tenha votado nele", diz dona Almerinda.
Brasília, 14 horas. Começa o desfile em carro aberto. O povo se aproxima, uma pessoa fura o bloqueio e abraça Lula. Primeiras impressões. "Que popularidade... nunca vi um presidente assim", diz dona Almerinda. Dona Zelita completa: "Na volta de Getúlio, em 1952, também teve multidão. Não vi, mas acompanhei no rádio".
Lula entra no Congresso. A platéia aplaude. Dona Zelita desconfia: "Não gosto de tutu, mas sirvo no prato. Tem muita gente que tá ali e não gosta do Lula, mas quer tirar uma casquinha"."
Lula faz o juramento estabelecido pela Constituição. "Que Deus o ajude a honrar essas palavras", diz dona Zelita. Começa o hino nacional. "Ele nem pode cantar de tão emocionado", exclama dona Almerinda, igualmente emocionada.
A tese da casquinha se comprova. O primeiro secretário da Câmara, Severino Cavalcanti, quebra o protocolo e discursa. Dona Zelita não perdoa: "Papagaio de pirata. Não aguenta esperar calado".
Close em Fidel e Duhalde. "A América Latina em peso", completa dona Zelita, a essa altura mais falante que dona Almerinda. Lula começa a discursar: "Estou aqui neste dia sonhado por tantas gerações". "Aleluia", responde dona Zelita.
Reforma agrária. "Vou lá cavar e plantar", diz dona Zelita. "De chapéu de palha e tudo.""
"Criar emprego será minha obsessão", promete Lula. "Já me arrependi de não ter votado nele", murmura dona Almerinda.
"O Brasil precisa fazer um mergulho para dentro de si mesmo, sem fechar as janelas para o mundo", continua Lula. "Foi por isso que convenci toda a minha família a votar nele", diz dona Zelita. "Mais de cem."
Lula fecha o seu discurso. "Hoje é o dia do reencontro do Brasil consigo mesmo." "Esse momento prova que os homens que acham que sabem tudo não são tudo", sentencia dona Zelita.
Jackson, o menino criado por dona Almerinda, acompanha tudo com o olhar esperto. "Um dia, você também pode ser presidente", diz alguém em volta da TV. "Quero não. Tem que tomar conta de tudo, tem que ficar mandando em todo mundo", relativiza Jackson.
Dona Zelita e dona Almerinda riem, mas sabem que algo acaba de mudar. No campo simbólico, a posse de Lula transcende o esgotamento de um modelo. Além de trazer consigo uma esperança extraordinária, o ritual ao qual estamos assistindo implode um sistema de castas, redefine o campo dos possíveis.
A trajetória de Lula mostra que não é utópico sair de uma das regiões mais pobres do país e, dentro do jogo democrático, inverter uma equação que se arrasta há mais de 500 anos. Os pais de dona Zelita e de dona Almerinda não puderam vivenciar essa transformação. Elas sim.
A faixa presidencial muda de mãos. Dona Almerinda e dona Zelita se olham. "Tô muito feliz, mas muita gente deve estar chorando. Se der certo, daqui a quatro anos a gente dá o repeteco", conclui dona Zelita.



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