São Paulo, #!L#Sexta-feira, 04 de Fevereiro de 2000


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LIVROS
Enciclopédia traz africanos e sua diáspora

JOHN THORNTON
do "The New York Times Book Review"


Na breve introdução que fazem a "Africana", Kwame Anthony Appiah e Henry Louis Gates Jr. reivindicam para si o grande projeto da vida de W. E. B. Du Bois: criar uma enciclopédia dos africanos e afro-americanos. Tendo trabalhado nela de maneira intermitente desde 1909, Du Bois morreu em Gana, em 1963, sem completá-la. E ali ela permaneceu, como tributo inacabado a sua memória.
A "Encyclopedia Africana" de Du Bois era um projeto da primeira metade do século 20, com seus problemas e desafios próprios.
Ao mesmo tempo em que reconhecem o valor do trabalho de Du Bois, Appiah e Gates não estão especialmente interessados em trilhar o mesmo caminho. Professores de Harvard, membros eminentes do que pode ser chamada de a nova intelligentsia negra e mais ancorados na cultura dominante norte-americana do que qualquer líder negro da época de Du Bois poderia ser, buscaram criar uma enciclopédia um pouco diferente da dele, adequada ao mundo de hoje.
Seu enfoque é profundamente global; cerca de 40% do livro é dedicado a verbetes relativos à África, e uma parte muito considerável ao Caribe e à América Latina, o que muitos leitores norte-americanos enxergarão como sendo em detrimento da ênfase sobre os Estados Unidos.
Mas é claramente essa a intenção dos autores: situar os afro-americanos num mundo mais amplo e mais complexo do que a maioria dos norte-americanos normalmente enxerga. As pessoas que gostam de folhear enciclopédias em busca de curiosidades -e este é um livro maravilhoso para leitores desse tipo- encontrarão uma multidão de verbetes sobre líderes políticos, personalidades culturais e heróis esportivos africanos, latino-americanos e das Índias Ocidentais de origem africana, pessoas sobre as quais provavelmente nunca ouviram falar.
Os editores querem que essa diáspora mundial seja vista em perspectiva histórica. O artigo "Raça na América Latina", por exemplo, explica a evolução das idéias relativas a raça e, especialmente, miscigenação racial ao longo dos séculos na América do Sul. Outro verbete -um dos mais longos do livro- trata do quilombo de Palmares, um Estado criado por escravos fugitivos no Brasil do século 17.
Appiah e Gates deixam a declaração política mais contundente de "Africana" a cargo da ênfase global do livro e não tanto do conteúdo dos próprios verbetes. Exemplo: embora Gates seja um crítico contundente dos elementos racistas e anti-semitas presentes no nacionalismo negro norte-americano radical, os verbetes sobre Louis Farrakhan e a Nação do Islã são redigidos em tom cuidadosamente neutro, enfatizando a dignidade e autonomia do movimento, e não suas frequentes manifestações de racismo.
No campo da história africana, igualmente repleto de dúvidas, os editores deixam que o design fale mais alto do que o conteúdo. Dão amplo espaço à história do Egito, ao lado das da Núbia e da Etiópia, e, tratando o Egito como parte da África, reivindicam sua história para os afro-americanos.
Mas confiam o tema a acadêmicos do mainstream, que evitam a questão politicamente carregada da identidade racial nos verbetes propriamente ditos.
Deixando de lado o foco sobre o Egito e o nordeste africano, o tratamento dado à África como um todo é decepcionante. As civilizações da África atlântica constituem as verdadeiras raízes das populações afro-americanas de hoje, em todo o hemisfério ocidental. Apesar disso, embora o tema ganhe espaço generoso, o conteúdo é pouco inspirador. Boa parte dele consiste em verbetes muito curtos sobre dúzias de grupos étnicos diferentes. Diferentemente dos artigos que tratam da civilização do vale do Nilo, os verbetes relativos aos reinos históricos mais importantes da África atlântica -Congo, Oyo, Asante e Dahomey- não foram escritos por especialistas renomados e não há ensaios interpretativos referentes à região.
Mesmo sobre impérios mais importantes entre esses, os verbetes são curtos, raramente ocupando mais de uma coluna (pouco mais do que o espaço dedicado à revista "Essence").
De fato, um dos poucos ensaios que integram o livro é dedicado ao comércio de escravos atravessando o Atlântico, fato que deixa a impressão de que a única coisa digna de nota na história da África atlântica é seu envolvimento com a escravidão.
Erros infelizes são cometidos até mesmo nos verbetes curtos. A parte referente ao reino de Congo, por exemplo, situa a decadência do reino a partir do século 16 e do comércio escravista português, sendo que as pesquisas mais recentes identificam o século 17 como a era de ouro do Congo. Erros menores podem ser encontrados em toda parte. Os leitores que esperavam que "Africana" pudesse ser uma fonte de informações confiáveis serão decepcionados.
As maiores contribuições a "Africana" talvez sejam seus ensaios, que funcionam como a seção "Macropédia" da "Encyclopaedia Britannica", apontando conexões que podem não estar indicadas nos verbetes pontuais. É uma pena que muitos dos belos ensaios mais curtos não sejam destacados, mas apenas incluídos na lista total, entre centenas de outros verbetes. Exemplo: o leitor só vai encontrar o ótimo ensaio "Grupos Étnicos Africanos na América Latina e Caribe", de Rosanne Adderley, que trata do significado da etnia na África e entre os escravos americanos, e outra pequena jóia intitulada "Os Críticos da Escravidão na Era Colonial", de Liliana Obregón, se vasculhar a lista geral de verbetes.
"Africana" traz muitos verbetes sobre personalidades populares dos mundos cultural e esportivo (coisa que possivelmente teria sido deplorada por Du Bois, de perspectiva frequentemente elitista), e sabe apontar ligações culturais diversas, como se pode ver no verbete relativo ao rap, que aponta suas raízes no "toasting" jamaicano e no soul. Por outro lado, avaliar o que terá significado duradouro nem sempre é fácil. Vários artistas do rap ganham verbetes diferentes (é o caso de Run-D.M.C., Tupac Shakur e Puff Daddy, entre outros), refletindo o interesse de longa data nutrido por Gates pelo gênero. No entanto, mulheres igualmente influentes -Chaka Khan, Mary J. Blige e Lauryn Hill- nem sequer são mencionadas.
Mas essas críticas não alteram o fato de que "Africana" será uma ferramenta muito útil, com o potencial de determinar novos padrões e modificar atitudes em relação à experiência africana e afro-americana. Com isso, deve alcançar as metas de seus autores, e até mesmo as de Du Bois.


John Thornton, professor de história na Universidade Millersville, na Pensilvânia (EUA), é autor de "Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680" e "The Kongolese St. Anthony".

Tradução Clara Allain



Livro: Africana: The Encyclopedia of the African and African American Experience Organização: Kwame Anthony Appiah e Henry Louis Gates Jr. Editora: Basic Civitas Books/ Perseus Books Group, Nova York Quanto: US$ 42 (2.095 págs.) Onde encomendar: www.amazon.com


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