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São Paulo, terça-feira, 04 de fevereiro de 2003

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BERNARDO CARVALHO

Exceção cultural

Maurice Pialat morreu na noite de 10 de janeiro, aos 77 anos. Não deixou mais do que uma dezena de filmes. O descompasso entre as homenagens que se seguiram na França e a relativa indiferença da imprensa no resto do mundo não revela, entretanto, apenas o protecionismo cultural dos franceses, como poderiam dizer os detratores, mas levanta questões interessantes sobre as artes e o que é política cultural.
Em 1987, quando ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, com "Sob o Sol de Satã", Pialat foi vaiado pelo público da sessão de entrega de prêmios, num acontecimento inédito. Não se fez de rogado. Sua reação entrou não só para a antologia de curiosidades da história do festival, como consagrou de vez a imagem do cineasta virulento, reputado pelo mau humor. Em vez dos tradicionais agradecimentos, empunhou o troféu e revidou: "Vocês não gostam de mim. Pois saibam que também não gosto de vocês".
Havia pelo menos dois tipos de vaias na sessão de gala de encerramento do festival: a dos franceses que vão a Cannes para ver de perto os astros de Hollywood e a dos estrangeiros que não reconheciam no cineasta o autor que uma parcela minoritária, mas prestigiosa, da crítica francesa celebrava como um herdeiro de Jean Renoir.
Pialat foi um caso curioso. De origem pobre, teve uma iniciação difícil. Demorou para chegar ao cinema. Perdeu o bonde da "nouvelle vague". Embora fosse pouco mais velho do que a maioria dos expoentes daquela geração, só conseguiu dirigir o primeiro longa-metragem bem depois deles, aos 44 anos. E teve que lutar contra a indiferença da intelectualidade local, que o via como um diretor comercial (seus filmes sempre tiveram sucesso de público).
"Tive problemas desde o início. Como se estivesse diante de um muro, como se houvesse uma rejeição. Mas é quando as coisas vão mal que eu fico melhor", declarou ao jornal "Libération".
Só nos anos 80, com a chancela de críticos como Serge Daney, é que veio por fim o reconhecimento, embora parcial e restrito à França, como autor e cineasta de primeira linha. Na série "História(s) do Cinema", feita para a TV, Godard presta uma homenagem cifrada ao colega ao se referir aos cineastas mortos Becker, Rossellini, Melville, Franju, Jacques Demy e Truffaut: "Você os conheceu, sim, eram meus amigos".
É uma citação da última frase de "Van Gogh", que Pialat filmou em 1991 sobre o final da vida do pintor em Auvers-sur-Oise. Na última cena do filme, uma menina que conviveu com Van Gogh nos meses que antecederam a sua morte responde a um homem que lhe pergunta se ela o havia conhecido: "Sim, era meu amigo", logo antes da tela preta e dos créditos.
Ao contrário de Godard, no entanto, o problema do reconhecimento de Pialat é que a sua originalidade nunca foi tão explícita quanto a dos cineastas da "nouvelle vague". A platéia que o vaiou em Cannes, em 1987, não reconheceu em "Sob o Sol de Satã" o que havia aprendido a chamar de filme de autor. Foi iludida pela aparência clássica da obra, a ponto de confundi-la com um filme convencional e acadêmico.
Ironicamente, Pialat nunca fez concessões. Seu cinema é radicalmente pessoal. Sua autoria vem de uma intensidade realista sem precedentes no cinema francês, tanto na direção de atores como na imagem. Para um estrangeiro, porém, essa originalidade pode ser demasiado sutil -ou pura mistificação protecionista.
O caso de Pialat confirma que nas artes tudo depende do ponto de vista e da formação do espectador, do leitor ou do ouvinte. Não há critérios absolutos. Se o juízo e o gosto são relativos, tudo depende do aprimoramento dos parâmetros com base na educação e na exposição do espectador à história e ao contexto em que estão inseridas as obras. Só a variedade desse repertório de estilos e linguagens lhe permitirá reconhecer o mérito da originalidade autoral, mesmo onde e quando menos a espera.
Há uma bruta diferença entre o protecionismo que perpetua o provincianismo e a mediocridade, por protegê-los de termos de comparação exteriores, e a política cultural determinada a preservar a diversidade para promover justamente o confronto e incentivar a ampliação dos critérios não só dos espectadores mas dos próprios artistas, de modo a que não se esgotem em si mesmos.
A melhor política cultural será sempre a que assegura os desvios em vez de se contentar com os caminhos já existentes ou dominantes. É um lugar-comum na cultura americana, hoje dominante, exigir da boa literatura personagens psicologicamente verossímeis, "de carne e osso". Por esse critério, por exemplo, Philip Roth seria um escritor infinitamente superior a Borges.
Quando os franceses propõem o princípio de "exceção cultural", pondo os bens artísticos acima das regras de livre comércio a que estão sujeitas as mercadorias no mercado internacional, estão apenas combatendo a ilusão de critérios subjetivos absolutos impostos pela hegemonia econômica. Critérios subjetivos, como o gosto, dependem da formação e da educação de cada um, e das diferenças culturais. E é só isso o que a política da chamada "exceção cultural" pretende garantir.


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