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BERNARDO CARVALHO
Exceção cultural
Maurice Pialat morreu na
noite de 10 de janeiro, aos
77 anos. Não deixou mais do que
uma dezena de filmes. O descompasso entre as homenagens que se
seguiram na França e a relativa
indiferença da imprensa no resto
do mundo não revela, entretanto,
apenas o protecionismo cultural
dos franceses, como poderiam dizer os detratores, mas levanta
questões interessantes sobre as artes e o que é política cultural.
Em 1987, quando ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, com "Sob o Sol de Satã", Pialat foi vaiado pelo público da sessão de entrega de prêmios, num
acontecimento inédito. Não se fez
de rogado. Sua reação entrou não
só para a antologia de curiosidades da história do festival, como
consagrou de vez a imagem do cineasta virulento, reputado pelo
mau humor. Em vez dos tradicionais agradecimentos, empunhou
o troféu e revidou: "Vocês não
gostam de mim. Pois saibam que
também não gosto de vocês".
Havia pelo menos dois tipos de
vaias na sessão de gala de encerramento do festival: a dos franceses que vão a Cannes para ver de
perto os astros de Hollywood e a
dos estrangeiros que não reconheciam no cineasta o autor que uma
parcela minoritária, mas prestigiosa, da crítica francesa celebrava como um herdeiro de Jean Renoir.
Pialat foi um caso curioso. De
origem pobre, teve uma iniciação
difícil. Demorou para chegar ao
cinema. Perdeu o bonde da "nouvelle vague". Embora fosse pouco
mais velho do que a maioria dos
expoentes daquela geração, só
conseguiu dirigir o primeiro longa-metragem bem depois deles,
aos 44 anos. E teve que lutar contra a indiferença da intelectualidade local, que o via como um diretor comercial (seus filmes sempre tiveram sucesso de público).
"Tive problemas desde o início.
Como se estivesse diante de um
muro, como se houvesse uma rejeição. Mas é quando as coisas
vão mal que eu fico melhor", declarou ao jornal "Libération".
Só nos anos 80, com a chancela
de críticos como Serge Daney, é
que veio por fim o reconhecimento, embora parcial e restrito à
França, como autor e cineasta de
primeira linha. Na série "História(s) do Cinema", feita para a
TV, Godard presta uma homenagem cifrada ao colega ao se referir
aos cineastas mortos Becker, Rossellini, Melville, Franju, Jacques
Demy e Truffaut: "Você os conheceu, sim, eram meus amigos".
É uma citação da última frase
de "Van Gogh", que Pialat filmou
em 1991 sobre o final da vida do
pintor em Auvers-sur-Oise. Na última cena do filme, uma menina
que conviveu com Van Gogh nos
meses que antecederam a sua
morte responde a um homem que
lhe pergunta se ela o havia conhecido: "Sim, era meu amigo", logo
antes da tela preta e dos créditos.
Ao contrário de Godard, no entanto, o problema do reconhecimento de Pialat é que a sua originalidade nunca foi tão explícita
quanto a dos cineastas da "nouvelle vague". A platéia que o
vaiou em Cannes, em 1987, não
reconheceu em "Sob o Sol de Satã" o que havia aprendido a chamar de filme de autor. Foi iludida
pela aparência clássica da obra, a
ponto de confundi-la com um filme convencional e acadêmico.
Ironicamente, Pialat nunca fez
concessões. Seu cinema é radicalmente pessoal. Sua autoria vem
de uma intensidade realista sem
precedentes no cinema francês,
tanto na direção de atores como
na imagem. Para um estrangeiro,
porém, essa originalidade pode
ser demasiado sutil -ou pura
mistificação protecionista.
O caso de Pialat confirma que
nas artes tudo depende do ponto
de vista e da formação do espectador, do leitor ou do ouvinte. Não
há critérios absolutos. Se o juízo e
o gosto são relativos, tudo depende do aprimoramento dos parâmetros com base na educação e
na exposição do espectador à história e ao contexto em que estão
inseridas as obras. Só a variedade
desse repertório de estilos e linguagens lhe permitirá reconhecer
o mérito da originalidade autoral, mesmo onde e quando menos
a espera.
Há uma bruta diferença entre o
protecionismo que perpetua o
provincianismo e a mediocridade, por protegê-los de termos de
comparação exteriores, e a política cultural determinada a preservar a diversidade para promover
justamente o confronto e incentivar a ampliação dos critérios não
só dos espectadores mas dos próprios artistas, de modo a que não
se esgotem em si mesmos.
A melhor política cultural será
sempre a que assegura os desvios
em vez de se contentar com os caminhos já existentes ou dominantes. É um lugar-comum na cultura americana, hoje dominante,
exigir da boa literatura personagens psicologicamente verossímeis, "de carne e osso". Por esse
critério, por exemplo, Philip Roth
seria um escritor infinitamente
superior a Borges.
Quando os franceses propõem o
princípio de "exceção cultural",
pondo os bens artísticos acima
das regras de livre comércio a que
estão sujeitas as mercadorias no
mercado internacional, estão
apenas combatendo a ilusão de
critérios subjetivos absolutos impostos pela hegemonia econômica. Critérios subjetivos, como o
gosto, dependem da formação e
da educação de cada um, e das diferenças culturais. E é só isso o
que a política da chamada "exceção cultural" pretende garantir.
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