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São Paulo, terça-feira, 04 de fevereiro de 2003

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Músico Silvério Pessoa moderniza lado menos conhecido de Jackson do Pandeiro

Frevo alienígena

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

O forrozeiro Jackson do Pandeiro também criou frevos, e frevo ainda é um gênero moderno à beça. O músico pernambucano Silvério Pessoa, 39, quer retirar do esquecimento a primeira afirmação e de quebra provar a validade da segunda. Ex-líder da banda pós-mangue beat Cascabulho, ele dedica àquele universo os 54 minutos de seu segundo álbum solo, "Batidas Urbanas - Projeto Micróbio do Frevo".
O CD traz 13 frevos interpretados (e às vezes também compostos) pelo eclético Jackson, mais faixas-homenagens especialmente criadas, um remix e uma experiência de "tecno-frevo" moldada pelos colegas pernambucanos do Digital Groove. Almira Castilho, ex-mulher e parceira de Jackson, participa de "Papel Crepom".
A lista de convidados é gigante, reunindo desde boa parte da crescente comunidade musical jovem do Recife até o veterano percussionista Naná Vasconcelos, ídolo que passou incólume pelos conflitos locais de gerações.
Pessoa diz que o projeto, independente, só pôde ser concretizado graças a leis estaduais de incentivo, e mesmo assim sob muita desconfiança.
"Ninguém acreditava no disco, nem a Secretaria de Cultura. Alguns achavam que, se era para homenagear o frevo, devia ser com Capiba", conta o artista, citando entre os obstáculos o fato de Jackson do Pandeiro (1919-82) ser paraibano, e não pernambucano.
Ele admite a intenção provocadora de eleger um forrozeiro paraibano para prestar tributo ao frevo, no Estado que é tido como terra natal do gênero e que viu nascer seus principais inventores e divulgadores, Capiba e Nelson Ferreira.
"É uma provocação, mas que pode resultar numa melhor compreensão do que foram as orquestras de frevo. Jackson frequentou a orquestra de jazz do pai de Capiba, em Campina Grande (PB). Ele foi um paraibano com certa nuance de alma bastante pernambucana", morde/assopra.
A provocação avança pelas intervenções "modernas" que os frevos vão sofrendo ao longo do CD: "A gente tentou desarrumar um pouco a tradição, encontrar um hibridismo entre o frevo e as várias vertentes da música urbana contemporânea. Aí temos Zé Brown (do grupo Faces do Subúrbio) fazendo rap, o drum'n'bass do Re:combo, o hardcore de Canisso (Devotos) e China (ex-Sheik Tosado)".
"A tradição do frevo ainda é oligárquica em Pernambuco, então quisemos dar uma descontinuidade a isso, mas com uma despretensão maluca. Não foi premeditado. Fomos chamando as pessoas, e as coisas foram acontecendo dentro do estúdio mesmo."
A pesquisa para o disco foi elaborada por José Manuel Pereira de Lemos, que também apresentou a Pessoa o repertório de Jacinto Silva, explorado no CD anterior, "Bate o Mancá" (2001).
Centra-se na produção carnavalesca de Jackson, que rendeu cerca de 80 canções entre 1954 (quando ele gravou sua estréia no gênero, "Micróbio do Frevo") e o final dos anos 60.
O músico especula sobre o porquê de a face carnavalesca de Jackson ter sido soterrada pelo tempo: "Segundo Almira Castilho, essas músicas despertaram ciúme no Rio de Janeiro, onde estavam os compositores do samba e das escolas. Jackson foi morar no Rio e com o tempo acabou dando prioridade à veia do forró".
Ele segue pelo fio da história perdida: "Esses LPs, que estão todos fora de catálogo, não traziam crédito nenhum, mas se sabe que os arranjos eram feitos por gente como Pixinguinha, Severino Araújo, Moacir Santos e outros".
O fio vem dar em sua própria história, de compositor escondido atrás das revisitações desde a saída do Cascabulho (que por sua vez já tinha por hábito homenagear o lado forró de Jackson):
"Tive que fazer minha alma encontrar um chão firme para pisar. Na saída da banda precisei readquirir confiança em mim. Fui criado dentro de engenho, voltar à obra do (migrante alagoano) Jacinto Silva foi uma afirmação da minha etnia, do "Povo dos Canaviais" [subtítulo do disco "Bate o Mancá']".
Continua: "No rádio de minha cidade, Carpina, era isso que ouvia. Jackson, Jacinto, Marinês, Nelson Gonçalves, Núbia Lafayette. Quando vim para a cidade ser office-boy e bancário, descobri outras maneiras, vi prédio muito grande, frequência modulada. O novo disco é uma migração transversa, de quem deixa o massapê, descobre a cidade e volta ao passado e à terra natal com esse som que ouviu na cidade".
E já prevê os passos futuros: "Sinto-me seguro em dizer que o próximo disco vai ser duplo e de músicas próprias. Depois do Carnaval começo a pré-produção, mapeando ladainhas e músicas dos romeiros do interior".
Não fosse suficiente tanto crossover, "Micróbio do Frevo" é dedicado não somente a Jackson, mas também ao multinacional Frank Zappa. Silvério Pessoa explica: "Zappa saía de orquestra sinfônica e ia fazer rockabilly, usava o princípio da descontinuidade. A genialidade do Jackson era muito semelhante a isso".


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