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Peter Punk
Em viagem no tempo, escritor argentino reinventa a história de J.M. Barrie, pai de Peter Pan
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
Peter Pan assobia "A Day in the
Life", dos Beatles, enquanto vê
passar diante dos olhos, com uma
risadinha marota no canto da boca, tudo o que aconteceu na cultura pop até a estréia do mais recente filme da série "Harry Potter".
A imagem, anacrônica, talvez
seja o melhor retrato de "Jardines
de Kensington", premiado livro
do escritor argentino Rodrigo
Fresán, 41, sucesso no mundo literário de língua hispânica que está
sendo vertido ao alemão, francês,
holandês, russo e português (o de
Portugal, pois para o Brasil ainda
não há planos).
O romance estabelece um vínculo entre o período vitoriano e os
"swinging sixties", na Inglaterra,
ambas épocas em que, para Fresán, a "história se tornou mais
histórica". Cada uma, a seu modo,
promoveu tamanha celebração
da infância e da juventude que
transformaria para sempre seus
papéis no mundo ocidental.
O livro é um complicado jogo
de espelhos através do tempo.
Num plano, temos a biografia de
um personagem real, o escritor
escocês J.M. Barrie (1860-1937),
que inventou Peter Pan e cuja vida
é recriada no filme "Em Busca da
Terra do Nunca", que estréia hoje.
Depois, há a história de Peter
Hook, garoto criado em Londres
nos anos 60 por
pais metidos a
idealistas e mergulhados no mundo das drogas.
"A infância
é uma ficção, reescritura, memória
daquilo que
decidimos
recordar e
esquecimento do
que nos
impomos
esquecer"
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Num terceiro
plano, Hook recorda sua infância
e fala do personagem dos livros infantis que passou
a escrever. O herói, Jim Yang, é
um garoto que
possui uma "cronocicleta" mágica que permite viajar no tempo.
O intrincado enredo serve de
justificativa para que Fresán elabore um verdadeiro ensaio, claramente influenciado por Proust,
sobre o significado da memória
para a construção da infância,
além de expressar um verdadeiro
fascínio pela trajetória de Barrie.
Pouco conhecido no Brasil, Fresán integra uma geração de escritores que vem renovando a literatura latino-americana ao buscar
alternativas fora da "ditadura" do
realismo mágico.
Leia abaixo trechos da entrevista que o autor concedeu à Folha,
de Barcelona, onde vive.
Folha - O que a era vitoriana e os
"swinging sixties" têm em comum?
Rodrigo Fresán - Tento mostrar
que ambos podem funcionar como uma bicicleta para duas pessoas na hora de contar uma história. São épocas aparentemente irreconciliáveis, mas ainda assim
próximas além do tempo. Épocas
que inventaram a anarquia. A vitoriana, a anarquia infantil, e os
anos 60, a anarquia adolescente.
Além disso, ambas propõem seu
respectivo marketing e merchandising de deuses e de imortais.
Folha - Qual a relação entre o herói Jim Yang e Peter Pan?
Fresán - Jim Yang está marcado
pela sombra de Peter Pan. Um
personagem que não está muito
longe também de Drácula. São filhos da eternidade que descem de
obscuros céus de territórios longínquos para se nutrir da energia
de jovens mortais, de párias fora
do tempo e do espaço, resistindo
com paixão anárquica e apocalíptica à ordem estabelecida.
Essa sintomatologia comum se
torna ainda mais poderosa ao investigarmos a figura do vampírico Barrie, alguém que sofria pela
idéia de abandonar a infância e de
virar parte do mundo dos adultos.
Alguém que, apenas superando
seu metro e meio de estatura, preferia rodear-se de crianças.
Folha - Idealizar a infância e a
adolescência é hoje algo universal
e parte de nossa cultura? Por quê?
Fresán - Sim. O que ocorre, e que
constitui um paradoxo, é que a invenção de nossa infância tenha lugar hoje na fase adulta e jamais
em seu próprio tempo. Nossa infância é uma ficção, uma reescritura, a memória daquilo que decidimos recordar e o esquecimento
do que nos impomos esquecer.
Folha - Se o século 19 foi o da infância e o 20 o da adolescência, o
21 será o da velhice?
Fresán - Sim, teremos velhos de
150 anos. O que prolongará a adolescência até os 40 ou os 50. Já estamos quase lá. Repare que todos
os artigos que conferem status,
computadores, celulares, automóveis, cada vez mais se parecem
com brinquedos.
Folha - Por que no romance quase
não há diálogos?
Fresán - Não gosto e não me sinto cômodo. Pode ter a ver com o
fato de que meus autores favoritos, Proust, Nabokov, Vonnegut,
Cheever, Banville,
Johnson, tenham
escrito livros que
ocorrem na cabeça dos narradores. O que mais
me atrai não é como o livro fala
mas sim o tratamento da voz
dentro do livro.
Folha - Você é um
crítico de Walt Disney, que imortalizou Peter Pan nas
telas. Qual é sua
opinião sobre ele e de seu legado
para o cinema infanto-juvenil?
Fresán - Disney é como um faraó
do século 20. É só pensar na construção da Disneylândia e na lenda
urbana de seu congelamento. Era
um tipo bastante repelente. De
seus filmes só me interessa "O
Aprendiz de Bruxo", em "Fantasia", no qual o repugnante Mickey
Mouse se permite, por uma única
vez, um gesto de rebeldia.
Folha - "Jardines de Kensington"
tem histórias dentro de histórias, a
de Peter Pan dentro da de Barrie, a
de Jim Yang dentro da de Peter
Hook, e todas dentro de sua própria narrativa. Faz lembrar a maneira como Cervantes contou a história de Dom Quixote. Que importância essa obra teve para você?
Fresán - Em primeiro lugar, o fato de ter sido lida e desfrutada durante os plantões do meu serviço
militar. Depois, sempre gostei
desse afã metaficcional de Cervantes, que já estava em Ariosto,
mas que o espanhol leva quase ao
delírio com essa purga da biblioteca onde aparecem livros de Cervantes. Gosto do momento, na segunda parte, em que já se comenta a primeira, suas falsificações e
dessa mesmíssima segunda parte
quando aparece na boca de uma
mulher possuída pelos demônios.
E há também Jorge Luis Borges.
Não só no conto "Pierre Menard,
Autor del Quijote" (1939), mas em
todos esses livros monstruosos e
bibliotecas alucinadas.
JARDINES DE KENSINGTON. Autor:
Rodrigo Fresán. Editora: Mondadori.
Quanto: US$ 13 (cerca de R$ 34; 398
págs.).
Onde encomendar: www.prometeolibros.com.ar.
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