São Paulo, sexta-feira, 04 de fevereiro de 2005

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Peter Punk

Em viagem no tempo, escritor argentino reinventa a história de J.M. Barrie, pai de Peter Pan

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Peter Pan assobia "A Day in the Life", dos Beatles, enquanto vê passar diante dos olhos, com uma risadinha marota no canto da boca, tudo o que aconteceu na cultura pop até a estréia do mais recente filme da série "Harry Potter".
A imagem, anacrônica, talvez seja o melhor retrato de "Jardines de Kensington", premiado livro do escritor argentino Rodrigo Fresán, 41, sucesso no mundo literário de língua hispânica que está sendo vertido ao alemão, francês, holandês, russo e português (o de Portugal, pois para o Brasil ainda não há planos).
O romance estabelece um vínculo entre o período vitoriano e os "swinging sixties", na Inglaterra, ambas épocas em que, para Fresán, a "história se tornou mais histórica". Cada uma, a seu modo, promoveu tamanha celebração da infância e da juventude que transformaria para sempre seus papéis no mundo ocidental.
O livro é um complicado jogo de espelhos através do tempo. Num plano, temos a biografia de um personagem real, o escritor escocês J.M. Barrie (1860-1937), que inventou Peter Pan e cuja vida é recriada no filme "Em Busca da Terra do Nunca", que estréia hoje.
Depois, há a história de Peter Hook, garoto criado em Londres nos anos 60 por pais metidos a idealistas e mergulhados no mundo das drogas.


"A infância é uma ficção, reescritura, memória daquilo que decidimos recordar e esquecimento do que nos impomos esquecer"
Num terceiro plano, Hook recorda sua infância e fala do personagem dos livros infantis que passou a escrever. O herói, Jim Yang, é um garoto que possui uma "cronocicleta" mágica que permite viajar no tempo.
O intrincado enredo serve de justificativa para que Fresán elabore um verdadeiro ensaio, claramente influenciado por Proust, sobre o significado da memória para a construção da infância, além de expressar um verdadeiro fascínio pela trajetória de Barrie.
Pouco conhecido no Brasil, Fresán integra uma geração de escritores que vem renovando a literatura latino-americana ao buscar alternativas fora da "ditadura" do realismo mágico.
Leia abaixo trechos da entrevista que o autor concedeu à Folha, de Barcelona, onde vive.
 

Folha - O que a era vitoriana e os "swinging sixties" têm em comum?
Rodrigo Fresán -
Tento mostrar que ambos podem funcionar como uma bicicleta para duas pessoas na hora de contar uma história. São épocas aparentemente irreconciliáveis, mas ainda assim próximas além do tempo. Épocas que inventaram a anarquia. A vitoriana, a anarquia infantil, e os anos 60, a anarquia adolescente. Além disso, ambas propõem seu respectivo marketing e merchandising de deuses e de imortais.

Folha - Qual a relação entre o herói Jim Yang e Peter Pan?
Fresán -
Jim Yang está marcado pela sombra de Peter Pan. Um personagem que não está muito longe também de Drácula. São filhos da eternidade que descem de obscuros céus de territórios longínquos para se nutrir da energia de jovens mortais, de párias fora do tempo e do espaço, resistindo com paixão anárquica e apocalíptica à ordem estabelecida.
Essa sintomatologia comum se torna ainda mais poderosa ao investigarmos a figura do vampírico Barrie, alguém que sofria pela idéia de abandonar a infância e de virar parte do mundo dos adultos. Alguém que, apenas superando seu metro e meio de estatura, preferia rodear-se de crianças.

Folha - Idealizar a infância e a adolescência é hoje algo universal e parte de nossa cultura? Por quê?
Fresán -
Sim. O que ocorre, e que constitui um paradoxo, é que a invenção de nossa infância tenha lugar hoje na fase adulta e jamais em seu próprio tempo. Nossa infância é uma ficção, uma reescritura, a memória daquilo que decidimos recordar e o esquecimento do que nos impomos esquecer.

Folha - Se o século 19 foi o da infância e o 20 o da adolescência, o 21 será o da velhice?
Fresán -
Sim, teremos velhos de 150 anos. O que prolongará a adolescência até os 40 ou os 50. Já estamos quase lá. Repare que todos os artigos que conferem status, computadores, celulares, automóveis, cada vez mais se parecem com brinquedos.

Folha - Por que no romance quase não há diálogos?
Fresán -
Não gosto e não me sinto cômodo. Pode ter a ver com o fato de que meus autores favoritos, Proust, Nabokov, Vonnegut, Cheever, Banville, Johnson, tenham escrito livros que ocorrem na cabeça dos narradores. O que mais me atrai não é como o livro fala mas sim o tratamento da voz dentro do livro.

Folha - Você é um crítico de Walt Disney, que imortalizou Peter Pan nas telas. Qual é sua opinião sobre ele e de seu legado para o cinema infanto-juvenil?
Fresán -
Disney é como um faraó do século 20. É só pensar na construção da Disneylândia e na lenda urbana de seu congelamento. Era um tipo bastante repelente. De seus filmes só me interessa "O Aprendiz de Bruxo", em "Fantasia", no qual o repugnante Mickey Mouse se permite, por uma única vez, um gesto de rebeldia.

Folha - "Jardines de Kensington" tem histórias dentro de histórias, a de Peter Pan dentro da de Barrie, a de Jim Yang dentro da de Peter Hook, e todas dentro de sua própria narrativa. Faz lembrar a maneira como Cervantes contou a história de Dom Quixote. Que importância essa obra teve para você?
Fresán -
Em primeiro lugar, o fato de ter sido lida e desfrutada durante os plantões do meu serviço militar. Depois, sempre gostei desse afã metaficcional de Cervantes, que já estava em Ariosto, mas que o espanhol leva quase ao delírio com essa purga da biblioteca onde aparecem livros de Cervantes. Gosto do momento, na segunda parte, em que já se comenta a primeira, suas falsificações e dessa mesmíssima segunda parte quando aparece na boca de uma mulher possuída pelos demônios.
E há também Jorge Luis Borges. Não só no conto "Pierre Menard, Autor del Quijote" (1939), mas em todos esses livros monstruosos e bibliotecas alucinadas.


JARDINES DE KENSINGTON. Autor: Rodrigo Fresán. Editora: Mondadori.
Quanto: US$ 13 (cerca de R$ 34; 398 págs.).
Onde encomendar: www.prometeolibros.com.ar.


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