|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Lamento de um pobre diabo
É o Diabo mesmo. Só pode ser
ele. O menino tentava chegar
a Deus, procurava-o com sinceridade, mas em lugar de Deus era o
Diabo que o atendia, que o servia,
que estava sempre ao lado dele. O
garoto queria ser casto, preparava-se para o dia em que faria o voto de castidade, voto perpétuo e
consciente, o sacerdócio era um
sonho possível.
Para chegar lá, seria necessário
enfrentar aquilo que uma tia chamava de "abrolhos", as dificuldades todas, do mundo e da carne. E
aí, pelos 12 anos, sentiu no corpo o
apelo do pecado, que veio de arrastão com o pavor de corromper-se, de perder a graça -enfim, foi
decisivo o momento em que, ajoelhado, diante do confessor, abriu o
seu espanto, que no fundo era medo.
Com a experiência de casos
iguais, o confessor entendeu rápido: "É o Diabo, meu filho, é o Diabo! É ele quem o tenta. Reze bastante para se livrar das ciladas
diabólicas! É o Diabo!".
Sim, era o Diabo. O menino rezava e, quanto mais rezava, mais
o Diabo se agarrava nele. O que
estaria errado? Nos momentos de
desespero, lembrava-se de que lera
a vida de um santo medieval, que
preferiu se mutilar na carne para
evitar o pecado da carne. Neste dilema, não foi o Diabo que o dissuadiu de solução tão radical. Ele
próprio desistiu da idéia.
Um dia não agüentou e procurou novamente o confessor. Perguntou se "aquilo" demoraria
muito. No fundo, na ingenuidade
que o Diabo ainda não afetara,
acreditava numa travessia, no
ônus de um rito, rito de passagem,
logo dominaria os sentidos todos.
O confessor, que tinha um mau
hálito capaz de afugentar uma legião de demônios, encorajou o garoto.
"Sim, meu filho, com o tempo isso passa, é coisa da idade, agüente
mais um pouco... e reze... reze
muito... reze a são Luís Gonzaga,
padroeiro da castidade... ele era
tão puro que nem olhava para a
própria mãe.."
O menino acreditou que "aquilo" passaria -um, dois anos no
máximo, e tudo seria mais fácil, as
noites de terror ficariam arquivadas em sua memória, para nunca
mais.
Bem, o Diabo, mais uma vez,
venceu a "terrível pugna" -a expressão é de um dos mais esclarecidos doutores da igreja. A pugna
da adolescência passou, o menino
tornou-se jovem, moço e homem
-com tudo de ruim que pertence
à miséria dos homens. O Diabo
nunca o deixou, continuou a terrível pugna na alma e na carne do
ex-menino.
E o cansaço foi grande, tão grande que, na altura dos 50 anos, ele
pensou em perguntar novamente
a alguém se "aquilo" demoraria
muito. O "aquilo", agora, era um
pouco diferente, ou bastante diferente. Não se tratava mais do Diabo e da carne, mas do diabo da
carne ou da carne do diabo. Seria
a maldição que acompanha aqueles que "botam a mão no arado e
olham para trás"? Até que ponto
ele botara a mão no arado? Até
que ponto ele podia olhar para os
lados sem ser para trás?
Tudo parecia ter ido embora,
para nunca mais voltar. Ele ficara
tão ruim, tão imprestável, que até
mesmo o Diabo parecia ter ido
embora, deixando-o desamparado -se é que o Diabo alguma vez
o amparara. Só então descobriu
que nem mais precisava do Diabo
para ele próprio ser um diabo. Se
na porta do inferno deixa-se "ogni
speranza", quando alguém se descobre sem qualquer esperança
nem precisa entrar no inferno. O
inferno não são mais os outros, é
ele mesmo. Ele, Diabo.
Diabo que se fez velho e, ao contrário da tradição, não se transformou em monge. Continuou
Diabo mesmo, um pouco defasado, deteriorado pelo tempo e pela
vida, mas Diabo para o uso e o
abuso.
Como todo mundo sabe, há
duas espécies de diabo. O diabo rico, que ri à toa e sempre vence; e o
pobre-diabo que sempre perde,
sempre foge, mesmo quando não
há água-benta para afugentá-lo.
E, como todos os pobres, diabos ou
homens, tentou se bastar entre os
pobres, na aldeia dos pobres-diabos como ele, um escorando o outro, mas todos se detestando.
Daí que o reencontro com a
condição humana o surpreende,
sofredor e faminto. Um pobre-diabo não se pode dar a esses luxos, é preciso dar um adeus a essas coisas, tomar juízo e vergonha, afinal, não fica bem a um
diabo, velho e pobre, curtir a fundo a necessidade de tudo querer
-e muito.
Não há de ser nada. A vida,
mesmo a vida de um pobre-diabo, é assim mesmo. E ele não tem
ninguém diante de quem se ajoelhar para perguntar: "Isso passa?". Por experiência pessoal, sabe
que essas coisas, como o "aquilo"
de antigamente, não passam tão
cedo, aliás não passam nunca.
Sabe-se condenado a morrer com
todas essas coisas que desgraçam
o homem e enegrecem a alma daqueles que julgam ainda tê-la.
Mas que diabo! A aventura, até
a menos venturosa, tem um preço
-e ele acredita que tem alguns
gravetos guardados para aumentar o fogo da caldeira que o queima. Em linguagem capitalista,
tem capital acumulado para gastar. E gasta. E se gasta. Mas se
inunda com as sucessivas "primeira vez" que se sucedem, vertiginosamente nos últimos anos.
Amaldiçoa o Diabo que nele está
durando tanto tempo. E geme
baixinho, pedindo que nada nunca termine.
Texto Anterior: Série: "Anjinhos" propõe trégua entre pais e filhos Próximo Texto: Panorâmica - Animação: Morre Dan Lee, desenhista da Pixar Índice
|