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MEMÓRIA
Paulo Francis, um intelectual desterrado
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Eis-me aqui, para surpresa minha, a escrever sobre o primeiro
ano da morte de Franz Paulo
Trannin da Matta Heilborn, cujo
nome híbrido revela o estado
emocional e ideológico ambíguo
que o perseguiu a vida toda: o
amor recalcado pela cidade natal,
o Rio de Janeiro, e a impossibilidade de nela viver.
Desse "pathos" deslocado resultou o fatídico passaporte para
Nova York, inaugurando entre
nós a cafonalha ridícula do "apê"
nova-iorquino na década de 80.
Dispenso citar nomes. Todo
mundo sabe da síndrome masoquista do noivo inatingível no jornal "New York Times".
Coisa jacu. Provinciano. Colonizado. Tenho por mim que Paulo
Francis, no íntimo de sua alma,
odiava jornalismo (um jornal gratuito não tem interesse, tal qual a
confidência psicanalítica), assim
como odiava universidade e professores.
O ideal da vida dele era o
far-niente aristocrático à Jorginho
Guinle, passando as horas do dia e
da noite numa forrada biblioteca,
ar-condicionado, livre do aborrecimento de escrever para ganhar
salário e pagar impostos.
Um intelectual, digamos, machadiano -esnobe, altivo, cheio
de nove-horas, "rentier", detonando herança, quiçá legada por
um tio-avô abonado e louco, o Oscar Wilde de São João Del Rey.
Não julgo fabulativa a hipótese
de Paulo Francis ter sido um agregado familiar do espírito que é o
equivalente nosso do idiota da família sartriano, espécie de Gustave
Flaubert que estudou no colégio
jesuíta Santo Inácio.
Fomos apresentados em 1977,
nono andar da Folha, por Claudio
Abramo, que o havia convidado
para escrever neste jornal desde
1975, um ano depois da "abertura" Geisel.
De formação marxista, chefe de
redação, Claudio Abramo tomou
tal iniciativa porque ficou comovido diante das sucessivas vezes em
que Francis entrou em cana entre
1969 e 1970, como se o jornal "O
Pasquim" fosse a revolução soviética de Ipanema.
Por causa ou não da cadeia, o fato é que para Paulo Francis o Golpe de 64 começou em 1969, a julgar pelos seus ensaios e romances.
Afinal, é preciso ter sido preso
para conhecer o país?
Claudio Abramo tinha o hábito
de perguntar a todo mundo: O que
você estava fazendo durante a ditadura?
Na década de 70, ao sair do xilindró, Francis arrumou bolsa na
Fundação Ford e rapou fora para
os Estados Unidos, onde viveu durango com pouca grana durante
cinco anos.
Assim, do ponto de vista histórico, as duas grandes personalidades (de 1964 a 1975) marcantes no
teatro vivido por Paulo Francis foram o ex-presidente João Goulart
e o jornalista Claudio Abramo.
Paradoxalmente, Francis nunca
entendeu a natureza imperialista
do Golpe de 64 e a queda de João
Goulart: o que se mundializa é
sempre a ideologia hegemônica do
centro. Detroit, e não Cataguazes.
Talvez seja por conta disso que
ele se frustrou como romancista.
Em vez de viajar no lance político
de 64, a épica de Francis (girando
em torno do ex-restaurante Antonio's) enveredou para a "cronique" da polícia e da droga.
"Cabeça de Negro". Metáfora
malfeita do pânico de filme policial série B e, ao mesmo tempo,
volúpia de ser enrabado por um
fora-da-lei, justificando-se o motivo de viver longe do Brasil.
No jornalismo, o talento de
Francis não deixou sucessor. Em
jornalismo não existem discípulos.
Muita gente tentou, mas deu
com os burros n'água. Ele não estava nem aí para discípulos.
Possivelmente, seu desejo era
permanecer na posteridade após a
morte. Foi terrível para o seu ego
narciso o baque do romance ruim.
Frustração estética. Ele ficava uma
vara quando ouvia o comentário:
o mais bem pago jornalista é um
artista frustrado.
O texto durar para quê?
Politicamente, Francis nunca
acreditou na capacidade do Brasil.
Devemos levantar a mão de FHC
ao céu se conseguirmos repetir
aqui o que está sendo bem feito lá
fora.
Colonialismo, meu caro.
É dentro dele que nós temos de
remar. Não há outra alternativa.
Salvo engano, foi esse o recado de
Francis, cuja paranóia antinacionalista culminou num ódio injustificável ao Estado, brigando com
a Petrobrás, declarando guerra
ideológica aos inimigos do Deus
mercado.
Todos já chegamos à TV.
Não é preciso dizer mais nada.
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