São Paulo, quarta, 4 de fevereiro de 1998

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MEMÓRIA
Paulo Francis, um intelectual desterrado

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Eis-me aqui, para surpresa minha, a escrever sobre o primeiro ano da morte de Franz Paulo Trannin da Matta Heilborn, cujo nome híbrido revela o estado emocional e ideológico ambíguo que o perseguiu a vida toda: o amor recalcado pela cidade natal, o Rio de Janeiro, e a impossibilidade de nela viver.
Desse "pathos" deslocado resultou o fatídico passaporte para Nova York, inaugurando entre nós a cafonalha ridícula do "apê" nova-iorquino na década de 80.
Dispenso citar nomes. Todo mundo sabe da síndrome masoquista do noivo inatingível no jornal "New York Times".
Coisa jacu. Provinciano. Colonizado. Tenho por mim que Paulo Francis, no íntimo de sua alma, odiava jornalismo (um jornal gratuito não tem interesse, tal qual a confidência psicanalítica), assim como odiava universidade e professores.
O ideal da vida dele era o far-niente aristocrático à Jorginho Guinle, passando as horas do dia e da noite numa forrada biblioteca, ar-condicionado, livre do aborrecimento de escrever para ganhar salário e pagar impostos.
Um intelectual, digamos, machadiano -esnobe, altivo, cheio de nove-horas, "rentier", detonando herança, quiçá legada por um tio-avô abonado e louco, o Oscar Wilde de São João Del Rey.
Não julgo fabulativa a hipótese de Paulo Francis ter sido um agregado familiar do espírito que é o equivalente nosso do idiota da família sartriano, espécie de Gustave Flaubert que estudou no colégio jesuíta Santo Inácio.
Fomos apresentados em 1977, nono andar da Folha, por Claudio Abramo, que o havia convidado para escrever neste jornal desde 1975, um ano depois da "abertura" Geisel.
De formação marxista, chefe de redação, Claudio Abramo tomou tal iniciativa porque ficou comovido diante das sucessivas vezes em que Francis entrou em cana entre 1969 e 1970, como se o jornal "O Pasquim" fosse a revolução soviética de Ipanema.
Por causa ou não da cadeia, o fato é que para Paulo Francis o Golpe de 64 começou em 1969, a julgar pelos seus ensaios e romances.
Afinal, é preciso ter sido preso para conhecer o país?
Claudio Abramo tinha o hábito de perguntar a todo mundo: O que você estava fazendo durante a ditadura?
Na década de 70, ao sair do xilindró, Francis arrumou bolsa na Fundação Ford e rapou fora para os Estados Unidos, onde viveu durango com pouca grana durante cinco anos.
Assim, do ponto de vista histórico, as duas grandes personalidades (de 1964 a 1975) marcantes no teatro vivido por Paulo Francis foram o ex-presidente João Goulart e o jornalista Claudio Abramo.
Paradoxalmente, Francis nunca entendeu a natureza imperialista do Golpe de 64 e a queda de João Goulart: o que se mundializa é sempre a ideologia hegemônica do centro. Detroit, e não Cataguazes.
Talvez seja por conta disso que ele se frustrou como romancista. Em vez de viajar no lance político de 64, a épica de Francis (girando em torno do ex-restaurante Antonio's) enveredou para a "cronique" da polícia e da droga.
"Cabeça de Negro". Metáfora malfeita do pânico de filme policial série B e, ao mesmo tempo, volúpia de ser enrabado por um fora-da-lei, justificando-se o motivo de viver longe do Brasil.
No jornalismo, o talento de Francis não deixou sucessor. Em jornalismo não existem discípulos.
Muita gente tentou, mas deu com os burros n'água. Ele não estava nem aí para discípulos.
Possivelmente, seu desejo era permanecer na posteridade após a morte. Foi terrível para o seu ego narciso o baque do romance ruim. Frustração estética. Ele ficava uma vara quando ouvia o comentário: o mais bem pago jornalista é um artista frustrado.
O texto durar para quê?
Politicamente, Francis nunca acreditou na capacidade do Brasil. Devemos levantar a mão de FHC ao céu se conseguirmos repetir aqui o que está sendo bem feito lá fora.
Colonialismo, meu caro.
É dentro dele que nós temos de remar. Não há outra alternativa. Salvo engano, foi esse o recado de Francis, cuja paranóia antinacionalista culminou num ódio injustificável ao Estado, brigando com a Petrobrás, declarando guerra ideológica aos inimigos do Deus mercado.
Todos já chegamos à TV.
Não é preciso dizer mais nada.



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