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Show do U2 deve ser tratado como final de Copa
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Não assisti ao show do U2
nem estou escrevendo mais um
artigo sobre a banda. Foi enorme a quantidade de notícias
em torno do evento, o que é até
uma vantagem. Não fosse a
turnê "PopMart", só teríamos esse chatíssimo caso Clinton ocupando a mídia. Assim,
pelo menos, as atenções se dividiram.
Mas a Ilustrada de anteontem publicou dois artigos sobre
o U2, de Arthur Nestrovski e
Bernardo Carvalho, que me
sugerem alguns comentários.
Editados na mesma página,
renovavam um debate já clássico na crítica cultural: a contraposição entre arte erudita e
cultura de massa.
Arthur Nestrovski, crítico de
música erudita, tentava com
bom humor superar sua irritação diante da pobreza estética
do U2 e da tarefa que lhe fora
sugerida, a de criticar o show.
Mas era impossível: "comparados a eles, os Beatles têm a
sofisticação de Debussy e a
profundidade de Schoenberg".
A harmonia de uma canção do
grupo era "de uma simplicidade constrangedora; e os versos
ficam à altura da harmonia. A
melodia é um pouco menos interessante".
Bernardo Carvalho já parecia prever restrições assim severas por parte de quem entende de música. Comparado a
Stravinski, por exemplo, o U2
não vale nada. "Você teria de
concordar, não sem antes argumentar com o óbvio: que são
gêneros diferentes."
Nesse momento, comecei a
perguntar se o óbvio é tão óbvio assim, e se o debate entre o
pop e o erudito faz algum sentido. Vejamos se me explico.
Os adeptos do erudito -entre os quais me incluo- defendem o alto nível musical contra o baixo nível musical. Claro, o alto é preferível ao baixo:
há mais elaboração, mais complexidade, mais expressão,
mais arte. Os defensores do
pop -entre os quais Bernardo
Carvalho só se inclui de forma
muito indireta- em geral não
negam as diferenças de "nível": argumentam em termos
de "gênero", ou então de "gosto".
Tenho a impressão de que todos esses termos, "nível", "gênero", ou "gosto" não são adequados a uma comparação entre o U2 e Schoenberg, por
exemplo. É como se disséssemos que nadar na piscina é
uma atividade de outro "nível" se comparada a comer
pastéis. Ou que pastéis são produtos de outro "gênero" se
comparados a colchões. Ou
que, entre dormir e jogar baralho, tudo é uma questão de
"gosto".
Na verdade, acho que há um
engano em pensar que, do U2 a
Schoenberg, existe uma escala
de qualidade musical, começando da dança primitiva,
passando pelo rock e pelo samba, evoluindo pela MPB e pelo
jazz, subindo mais um pouco
até Rossini e Tchaikovski, culminando em Bach e Beethoven. E há um engano em pensar que Beatles ou Chopin sejam nichos de preferência dentro de uma mesma parede, na
qual cada ouvinte se aloja conforme suas inclinações pessoais.
Essa escala de qualidade só
existe para quem tem formação erudita. Ou, corrigindo,
para quem quer ver apenas o
que existe de "musical" na
música. Talvez esse seja um fenômeno recente na história da
cultura. O filósofo Ortega y
Gasset tem um livro muito claro e agradável a respeito, tendenciosamente intitulado "A
Desumanização da Arte" (ed.
Cortez). Ele diz que, em outros
tempos, uma música "artística" servia a propósitos mais
amplos do que a simples "arte
pela arte". Por mais artística
que fosse, atendia a fins religiosos, patrióticos, políticos, de
entretenimento etc.
Para Ortega y Gasset, o mundo moderno foi conhecendo
uma separação entre esses diversos âmbitos -é também a
tese de Weber-, de modo que
a arte, antes um meio para servir a diversos fins, passou a ser
um valor em si mesmo, a ser
julgado segundo seus próprios
critérios, e não os da funcionalidade.
Esse filósofo é tido como conservador; mas mesmo um teórico da vanguarda em artes
plásticas, como Clement
Greenberg, defende idéias parecidas: o abstracionismo de
Pollock, a poesia de Valéry, a
grande arte de nosso século
buscam, em contraste com a
cultura de massas, a verdade
de seus próprios meios, a essência de si mesmas, o "pictórico",
o "musical", o "poético", por
exemplo, em oposição ao sentimentalismo, à busca de efeitos
extra-estéticos, característicos
da arte pop.
A partir desse raciocínio,
uma arte erudita sempre será
mais artística do que uma arte
não-erudita, simplesmente
porque é mais puramente "arte". Nada a opor quanto a isso.
Mas os adeptos do pop se defendem.
Defendem-se mal, a meu ver,
porque quando usam termos
como "gênero" e "gosto", estão
usando ainda o vocabulário
da estética, estão ainda incluindo o show do U2 e o poema de Valéry no âmbito de um
mesmo tipo de experiência,
que seria sempre o da "fruição
de uma obra de arte".
Ou estou muito enganado,
ou as centenas de milhares de
pessoas que foram ver o show
do U2 não foram lá pelas qualidades artísticas da banda. A
questão não é de "gosto" ou de
"gênero", mas de propósito e
de intenção.
Acredito que o que se busca
nesses megashows é uma experiência coletiva, o sentimento
oceânico de que falava Freud,
o erotismo coletivo. Poderia ser
um comício nazista; felizmente, não é. Claro, cada pessoa
escuta a música, cada pessoa
pode cantá-la, ouve os discos.
Mas o "ouvir", nesse caso, não
tem nada a ver com uma experiência "estética": é uma experiência emocional.
O fato de toda música popular ser pobre e repetitiva corresponde a essa função emocional. Serve para que, num
verão em Maresias, o sujeito
grave e regrave na memória
determinada melodia, de modo que, dez anos depois, quando ouvi-la no rádio, lembre-se
das experiências felizes -o sal
no corpo, o carro que atolou, o
namoro que não saía- pelas
quais passava então.
A admiração por determinada banda é menos um reconhecimento do gênio musical
do que um fenômeno de
"transferência" psicanalítica.
A melhor banda será aquela
que imantar determinados
afetos. Uma música de rock é
tão musical quanto um berro
-acho eu-, mas será tanto
mais bem-sucedida quanto
mais corresponder ao ato de
berrar na hora certa.
De modo que, esteticamente,
a discussão já está vencida. A
arte erudita é melhor. Do ponto de vista de uma multidão
que não tem educação artística, que talvez esteja às voltas
com emoções mais primitivas
ou mais autênticas (quem sabe?), que talvez tenha menos a
dizer e a ouvir, mas tenha muito a sentir de inarticulado e
violento, o rock é tão importante quanto o skate, o surf, o
futebol, o sexo. É nesse âmbito
que o rock existe, não no âmbito da estética.
O que há de desesperador
nessa situação é que shows do
U2 e congêneres sejam tratados como eventos musicais e
não como uma final de Copa
do Mundo. Pois nisso se renega
a possibilidade de que uma arte realmente "alta" consiga
ocupar, com mais refinamento, com mais inteligência, o lugar do transe e da catarse que
só os eventos de massa podem
produzir. Mas, para isso, teríamos de ter uma sociedade com
menos frustração, com menos
angústia, com menos calor humano reprimido. Tudo seria
mais elevado, menos violento,
menos apaixonado, menos tolo
e menos vibrante. Eu preferiria
assim -mas aí é uma questão
de gosto; ou então de preferência política.
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