São Paulo, quarta, 4 de fevereiro de 1998

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Show do U2 deve ser tratado como final de Copa

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Não assisti ao show do U2 nem estou escrevendo mais um artigo sobre a banda. Foi enorme a quantidade de notícias em torno do evento, o que é até uma vantagem. Não fosse a turnê "PopMart", só teríamos esse chatíssimo caso Clinton ocupando a mídia. Assim, pelo menos, as atenções se dividiram.
Mas a Ilustrada de anteontem publicou dois artigos sobre o U2, de Arthur Nestrovski e Bernardo Carvalho, que me sugerem alguns comentários. Editados na mesma página, renovavam um debate já clássico na crítica cultural: a contraposição entre arte erudita e cultura de massa.
Arthur Nestrovski, crítico de música erudita, tentava com bom humor superar sua irritação diante da pobreza estética do U2 e da tarefa que lhe fora sugerida, a de criticar o show. Mas era impossível: "comparados a eles, os Beatles têm a sofisticação de Debussy e a profundidade de Schoenberg". A harmonia de uma canção do grupo era "de uma simplicidade constrangedora; e os versos ficam à altura da harmonia. A melodia é um pouco menos interessante".
Bernardo Carvalho já parecia prever restrições assim severas por parte de quem entende de música. Comparado a Stravinski, por exemplo, o U2 não vale nada. "Você teria de concordar, não sem antes argumentar com o óbvio: que são gêneros diferentes."
Nesse momento, comecei a perguntar se o óbvio é tão óbvio assim, e se o debate entre o pop e o erudito faz algum sentido. Vejamos se me explico.
Os adeptos do erudito -entre os quais me incluo- defendem o alto nível musical contra o baixo nível musical. Claro, o alto é preferível ao baixo: há mais elaboração, mais complexidade, mais expressão, mais arte. Os defensores do pop -entre os quais Bernardo Carvalho só se inclui de forma muito indireta- em geral não negam as diferenças de "nível": argumentam em termos de "gênero", ou então de "gosto".
Tenho a impressão de que todos esses termos, "nível", "gênero", ou "gosto" não são adequados a uma comparação entre o U2 e Schoenberg, por exemplo. É como se disséssemos que nadar na piscina é uma atividade de outro "nível" se comparada a comer pastéis. Ou que pastéis são produtos de outro "gênero" se comparados a colchões. Ou que, entre dormir e jogar baralho, tudo é uma questão de "gosto".
Na verdade, acho que há um engano em pensar que, do U2 a Schoenberg, existe uma escala de qualidade musical, começando da dança primitiva, passando pelo rock e pelo samba, evoluindo pela MPB e pelo jazz, subindo mais um pouco até Rossini e Tchaikovski, culminando em Bach e Beethoven. E há um engano em pensar que Beatles ou Chopin sejam nichos de preferência dentro de uma mesma parede, na qual cada ouvinte se aloja conforme suas inclinações pessoais.
Essa escala de qualidade só existe para quem tem formação erudita. Ou, corrigindo, para quem quer ver apenas o que existe de "musical" na música. Talvez esse seja um fenômeno recente na história da cultura. O filósofo Ortega y Gasset tem um livro muito claro e agradável a respeito, tendenciosamente intitulado "A Desumanização da Arte" (ed. Cortez). Ele diz que, em outros tempos, uma música "artística" servia a propósitos mais amplos do que a simples "arte pela arte". Por mais artística que fosse, atendia a fins religiosos, patrióticos, políticos, de entretenimento etc.
Para Ortega y Gasset, o mundo moderno foi conhecendo uma separação entre esses diversos âmbitos -é também a tese de Weber-, de modo que a arte, antes um meio para servir a diversos fins, passou a ser um valor em si mesmo, a ser julgado segundo seus próprios critérios, e não os da funcionalidade.
Esse filósofo é tido como conservador; mas mesmo um teórico da vanguarda em artes plásticas, como Clement Greenberg, defende idéias parecidas: o abstracionismo de Pollock, a poesia de Valéry, a grande arte de nosso século buscam, em contraste com a cultura de massas, a verdade de seus próprios meios, a essência de si mesmas, o "pictórico", o "musical", o "poético", por exemplo, em oposição ao sentimentalismo, à busca de efeitos extra-estéticos, característicos da arte pop.
A partir desse raciocínio, uma arte erudita sempre será mais artística do que uma arte não-erudita, simplesmente porque é mais puramente "arte". Nada a opor quanto a isso. Mas os adeptos do pop se defendem.
Defendem-se mal, a meu ver, porque quando usam termos como "gênero" e "gosto", estão usando ainda o vocabulário da estética, estão ainda incluindo o show do U2 e o poema de Valéry no âmbito de um mesmo tipo de experiência, que seria sempre o da "fruição de uma obra de arte".
Ou estou muito enganado, ou as centenas de milhares de pessoas que foram ver o show do U2 não foram lá pelas qualidades artísticas da banda. A questão não é de "gosto" ou de "gênero", mas de propósito e de intenção.
Acredito que o que se busca nesses megashows é uma experiência coletiva, o sentimento oceânico de que falava Freud, o erotismo coletivo. Poderia ser um comício nazista; felizmente, não é. Claro, cada pessoa escuta a música, cada pessoa pode cantá-la, ouve os discos. Mas o "ouvir", nesse caso, não tem nada a ver com uma experiência "estética": é uma experiência emocional.
O fato de toda música popular ser pobre e repetitiva corresponde a essa função emocional. Serve para que, num verão em Maresias, o sujeito grave e regrave na memória determinada melodia, de modo que, dez anos depois, quando ouvi-la no rádio, lembre-se das experiências felizes -o sal no corpo, o carro que atolou, o namoro que não saía- pelas quais passava então.
A admiração por determinada banda é menos um reconhecimento do gênio musical do que um fenômeno de "transferência" psicanalítica. A melhor banda será aquela que imantar determinados afetos. Uma música de rock é tão musical quanto um berro -acho eu-, mas será tanto mais bem-sucedida quanto mais corresponder ao ato de berrar na hora certa.
De modo que, esteticamente, a discussão já está vencida. A arte erudita é melhor. Do ponto de vista de uma multidão que não tem educação artística, que talvez esteja às voltas com emoções mais primitivas ou mais autênticas (quem sabe?), que talvez tenha menos a dizer e a ouvir, mas tenha muito a sentir de inarticulado e violento, o rock é tão importante quanto o skate, o surf, o futebol, o sexo. É nesse âmbito que o rock existe, não no âmbito da estética.
O que há de desesperador nessa situação é que shows do U2 e congêneres sejam tratados como eventos musicais e não como uma final de Copa do Mundo. Pois nisso se renega a possibilidade de que uma arte realmente "alta" consiga ocupar, com mais refinamento, com mais inteligência, o lugar do transe e da catarse que só os eventos de massa podem produzir. Mas, para isso, teríamos de ter uma sociedade com menos frustração, com menos angústia, com menos calor humano reprimido. Tudo seria mais elevado, menos violento, menos apaixonado, menos tolo e menos vibrante. Eu preferiria assim -mas aí é uma questão de gosto; ou então de preferência política.



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