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FOLCLORE
Nelson da Rabeca canta para Alagoas
CARLOS BOZZO JUNIOR
especial para a Folha
Alagoas já tem o seu testamento
musical. O empresário alagoano
David Nogueira Gatto, 35, está fazendo um mapeamento sonoro do
Estado no CD "Das Alagoas", reunindo quase uma hora de verdadeiros achados musicais.
O CD, que tem custo de produção estimado em US$ 30 mil, será
mixado pelo sistema dolby surround, sob a supervisão musical
do compositor e percussionista
Caíto Marcondes (que fez a trilha
do filme "O Cineasta da Selva").
"O Mário de Andrade pulou Alagoas quando mapeou o Nordeste.
O que estou fazendo é apenas registrar o que há de melhor na música popular tradicional do Estado,
dando um tratamento de alta tecnologia", afirma o empresário.
"Não quero que as pessoas confundam meu projeto com filantropia, porque é uma coisa estritamente empresarial. Sei que existe
um retorno financeiro a médio
prazo muito bom." O álbum deve
ser lançado em março.
Entre sons de reisados, guerreiros, pagodes, canções de trabalho,
forrós, emboladas e uma banda de
pífanos que Gatto está levantando,
chamou-lhe atenção a "tocada" do
alagoano Nelson dos Santos, 70, o
"seu Nelson da Rabeca".
Escondido, Nelson faz rabecas e
compõe músicas no pequeno espaço da calçada de sua casa, em Marechal Deodoro (município a 24
km ao sul de Maceió). "Trabalho
aqui fora, para a zoada da rabeca
não acordar os meninos", disse o
artista, que tem dez filhos.
Durante todo o ano, Nelson vai a
pé ou de bicicleta vender rabecas e
tocá-las na praia do Francês, a cerca de oito quilômetros de sua casa.
A música de Nelson, dotada da
sonoridade melancólica e roufenha peculiar aos rabequeiros, utiliza processos técnicos muito simples. Talvez seja essa a razão de seu
encanto, a autenticidade.
Com quatro cordas afinadas em
quintas, sol-ré-lá-mi, a rabeca é
um ancestral medieval do violino,
com timbre mais baixo, que produz um som fanhoso, áspero e estridente nos agudos. O arco é constituído por fios de crina ou rabo de
cavalo ajustados às extremidades
de uma peça de madeira.
Tocada apoiando-a no coração
ou no ombro esquerdo e com a voluta (parte superior da cabeça dos
instrumentos de arco) voltada para baixo, a rabeca contribuiu muito para a evolução do violino.
Como Tomie Ohtake, Nelson da
Rabeca não batiza suas obras. Indagado sobre o nome de uma música, ele responde empunhando
sua rabeca e executa uma "tocada". Leia a seguir trechos da entrevista concedida pelo artista.
Folha - O senhor é músico ou "fazedor de rabeca"?
Nelson da Rabeca - Os dois. Dizem que cavalo velho não aprende
passada nova. Mas há 15 anos que
aprendi, faço e toco rabeca. Se botar a cabeça para funcionar, a gente
aprende qualquer coisa, mesmo
depois de velho.
Antes eu cortava cana, limpava
mato e cambitava (transportava,
nas costas de burros, cana-de-açúcar e lenha), mas faz uns 15 anos
que vivo de rabeca e, de lá para cá,
só topo com gente boa.
Folha - Em quanto tempo o senhor faz uma rabeca?
Nelson - Gasto quase uma semana. Eu fiz uma de encomenda para
um homem de São Paulo, o José
Gramani (professor da Unicamp,
morto recentemente, que fazia
parte do grupo Anima), em que
gastei 11 dias. Também todo dia ele
estava aqui cismando... Aí, fiz bem
caprichado, né?
Folha - Quanto custa?
Nelson - R$ 150. Quem botou esse
preço foi o José Gramani. Ele me
deu R$ 250, mais um aparelho de
som, pela rabeca que fiz para ele.
Ele me falou para não vender por
menos que R$ 150, mas eu não tenho preço certo, não. Às vezes,
vendo pelo que a pessoa oferece.
Folha - Onde e com quem o sr. toca?
Nelson - Nas praias. De vez em
quando, alguém vem me buscar e
vou tocar em Maceió. Já toquei até
com aquele barbudo, que toca até
em copo d'água...
Folha - Hermeto Pascoal.
Nelson - Esse mesmo. Toquei
num show dele em Maceió. Gostou
muito da minha tocada e das rabecas que faço. Comprou quatro, cada uma de uma tonalidade.
Folha - Que madeira o sr. usa?
Nelson - Jaqueira, traíba, gameleira, cajarana, mulungu mole,
timbaúba e embaúba. No arco, uso
rabo de cavalo e tem vez que faço
da mesma madeira para combinar.
Folha - Como o sr. sabe se a madeira está boa para construir uma
rabeca?
Nelson Quando ela vem seca, faz
um som bom, mas quando ela é
meio zarolha é melhor.
Folha - O que é zarolha?
Nelson - Quando ela não é nem
verde nem seca.
Folha - Que cola o sr. usa?
Nelson - Eu é que faço. Uso rabo
de tatu-do-mato, chama também
banana-de-macaco. Nasce de uma
planta que dá em jaqueira, coqueiro... Por todo canto acha. É a melhor cola que tem pelo meio do
mundo. É um "abacaxizinho".
Folha - E como vira cola?
Nelson - Pego ele e boto para assar no fogo. Quando assa, descasco
que nem a cana, tirando a capa de
cima. Depois, rapo ele, aí fica um
grude que cola juntando de um jeito que ninguém separa. De outubro até as trovoadas, é tempo de
ter. Aí, não compro cola. Eu faço.
Folha - O que é música?
Nelson - Às vezes, a gente está
pensando muita coisa e, quando
começa a tocar, fica com alegria. A
gente esquece tudo, de qualquer
passado ruim. A música dá saúde
para quem toca um instrumento.
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