São Paulo, Quinta-feira, 04 de Fevereiro de 1999
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FOLCLORE
Nelson da Rabeca canta para Alagoas

CARLOS BOZZO JUNIOR
especial para a Folha

Alagoas já tem o seu testamento musical. O empresário alagoano David Nogueira Gatto, 35, está fazendo um mapeamento sonoro do Estado no CD "Das Alagoas", reunindo quase uma hora de verdadeiros achados musicais.
O CD, que tem custo de produção estimado em US$ 30 mil, será mixado pelo sistema dolby surround, sob a supervisão musical do compositor e percussionista Caíto Marcondes (que fez a trilha do filme "O Cineasta da Selva").
"O Mário de Andrade pulou Alagoas quando mapeou o Nordeste. O que estou fazendo é apenas registrar o que há de melhor na música popular tradicional do Estado, dando um tratamento de alta tecnologia", afirma o empresário.
"Não quero que as pessoas confundam meu projeto com filantropia, porque é uma coisa estritamente empresarial. Sei que existe um retorno financeiro a médio prazo muito bom." O álbum deve ser lançado em março.
Entre sons de reisados, guerreiros, pagodes, canções de trabalho, forrós, emboladas e uma banda de pífanos que Gatto está levantando, chamou-lhe atenção a "tocada" do alagoano Nelson dos Santos, 70, o "seu Nelson da Rabeca".
Escondido, Nelson faz rabecas e compõe músicas no pequeno espaço da calçada de sua casa, em Marechal Deodoro (município a 24 km ao sul de Maceió). "Trabalho aqui fora, para a zoada da rabeca não acordar os meninos", disse o artista, que tem dez filhos.
Durante todo o ano, Nelson vai a pé ou de bicicleta vender rabecas e tocá-las na praia do Francês, a cerca de oito quilômetros de sua casa.
A música de Nelson, dotada da sonoridade melancólica e roufenha peculiar aos rabequeiros, utiliza processos técnicos muito simples. Talvez seja essa a razão de seu encanto, a autenticidade.
Com quatro cordas afinadas em quintas, sol-ré-lá-mi, a rabeca é um ancestral medieval do violino, com timbre mais baixo, que produz um som fanhoso, áspero e estridente nos agudos. O arco é constituído por fios de crina ou rabo de cavalo ajustados às extremidades de uma peça de madeira.
Tocada apoiando-a no coração ou no ombro esquerdo e com a voluta (parte superior da cabeça dos instrumentos de arco) voltada para baixo, a rabeca contribuiu muito para a evolução do violino.
Como Tomie Ohtake, Nelson da Rabeca não batiza suas obras. Indagado sobre o nome de uma música, ele responde empunhando sua rabeca e executa uma "tocada". Leia a seguir trechos da entrevista concedida pelo artista.

Folha - O senhor é músico ou "fazedor de rabeca"?
Nelson da Rabeca
- Os dois. Dizem que cavalo velho não aprende passada nova. Mas há 15 anos que aprendi, faço e toco rabeca. Se botar a cabeça para funcionar, a gente aprende qualquer coisa, mesmo depois de velho.
Antes eu cortava cana, limpava mato e cambitava (transportava, nas costas de burros, cana-de-açúcar e lenha), mas faz uns 15 anos que vivo de rabeca e, de lá para cá, só topo com gente boa.
Folha - Em quanto tempo o senhor faz uma rabeca?
Nelson
- Gasto quase uma semana. Eu fiz uma de encomenda para um homem de São Paulo, o José Gramani (professor da Unicamp, morto recentemente, que fazia parte do grupo Anima), em que gastei 11 dias. Também todo dia ele estava aqui cismando... Aí, fiz bem caprichado, né?
Folha - Quanto custa?
Nelson
- R$ 150. Quem botou esse preço foi o José Gramani. Ele me deu R$ 250, mais um aparelho de som, pela rabeca que fiz para ele. Ele me falou para não vender por menos que R$ 150, mas eu não tenho preço certo, não. Às vezes, vendo pelo que a pessoa oferece.
Folha - Onde e com quem o sr. toca?
Nelson
- Nas praias. De vez em quando, alguém vem me buscar e vou tocar em Maceió. Já toquei até com aquele barbudo, que toca até em copo d'água...
Folha - Hermeto Pascoal.
Nelson
- Esse mesmo. Toquei num show dele em Maceió. Gostou muito da minha tocada e das rabecas que faço. Comprou quatro, cada uma de uma tonalidade.
Folha - Que madeira o sr. usa?
Nelson
- Jaqueira, traíba, gameleira, cajarana, mulungu mole, timbaúba e embaúba. No arco, uso rabo de cavalo e tem vez que faço da mesma madeira para combinar.
Folha - Como o sr. sabe se a madeira está boa para construir uma rabeca?
Nelson
Quando ela vem seca, faz um som bom, mas quando ela é meio zarolha é melhor.
Folha - O que é zarolha?
Nelson
- Quando ela não é nem verde nem seca.
Folha - Que cola o sr. usa?
Nelson
- Eu é que faço. Uso rabo de tatu-do-mato, chama também banana-de-macaco. Nasce de uma planta que dá em jaqueira, coqueiro... Por todo canto acha. É a melhor cola que tem pelo meio do mundo. É um "abacaxizinho".
Folha - E como vira cola?
Nelson
- Pego ele e boto para assar no fogo. Quando assa, descasco que nem a cana, tirando a capa de cima. Depois, rapo ele, aí fica um grude que cola juntando de um jeito que ninguém separa. De outubro até as trovoadas, é tempo de ter. Aí, não compro cola. Eu faço.
Folha - O que é música?
Nelson
- Às vezes, a gente está pensando muita coisa e, quando começa a tocar, fica com alegria. A gente esquece tudo, de qualquer passado ruim. A música dá saúde para quem toca um instrumento.


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