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São Paulo, terça-feira, 04 de março de 2003

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ERUDITO/DVD

A histérica, o cego e o irmão mais novo por Debussy

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Histeria, ciúme, incesto, assassinato. Estreada em 1902, a ópera "Pélleas et Mélisande", de Claude Debussy (1862-1918), sugere perfumes e delicadezas para quem ouve de longe, mas traga quem se aproximar num vórtex de horrores humanos, raramente igualados até na rica tradição de horrores da ópera.
Interpretada em 1992 na Welsh National Opera, sob regência de Pierre Boulez e dirigida por Peter Stein, "Pélleas" é a mais camerística das grandes óperas e só cresce na versão em DVD, miniaturizada nos fones de ouvido e na tela do laptop.
Histeria: já desde a primeira cena, a soprano Alison Hagley exerce incríveis seduções da mulher inatingível, que "não sabe nada" (a sua frase mais frequente), de humor tão modulante quanto as harmonias.
"Não me toque!", diz Mélisande, no primeiro encontro com Golaud (Kenneth Maxwell), seu futuro marido; e a partir daí não há escapatória para o velho príncipe, claudicando "como um cego que procura seu tesouro no fundo do mar", enquanto o irmão mais novo, Pélleas (Neill Archer), tem sua chance de se apaixonar por Mélisande.
Não há escapatória para os três, na peça do escritor belga Maurice Maeterlinck (1862-1949), que hoje seria só um documento de época, não fosse pela música de Debussy. Por força dessa partitura, toda a carga pesada de símbolos -floresta, cegos, noite, fonte, anel- converte-se espantosamente em verdade. Tudo é, e não é, o que se vê. "A noite cai depressa", com os sentidos dobrados que todas as frases acabam ganhando aqui.
A maior virtude da montagem de Peter Stein talvez seja essa, então: cada palavra, cada acento da melodia ganha nova expressão sentimental e sexual. Como se qualquer gesto, qualquer arrepio, qualquer suspiro tivesse força para revelar o que não se pode deixar de velar.
Com isso, cresce também a própria interpretação musical de Boulez, onde cada uma das colcheias merece respeito. A genial discrição do maestro serve de palco para as controladas indiscrições do teatro de Stein, onde violências sem par acontecem sem um rastro de sangue. Belezas sem par também.
Inesquecíveis negridões do cenário, cortadas por geométricas linhas finíssimas de luz; inesquecíveis brilhos na água do fundo da gruta, onde Mélisande e Pélleas vêm procurar o anel de casamento perdido; inesquecíveis estrelas, no vasto céu ao fundo da torre, de onde caem os inesquecíveis cabelos da musa. Só esta cena já vale a montagem, uma sucessão de delícias de um nas notas, nos cabelos e nas mãos do outro, até o amorosíssimo, curto clímax da música.
Sua contraparte dramática é o "Grand Guignol" de Golaud cavalgando a mulher, à vista do impotente avô.
Ciúme: tudo esbarra embriagado de seu lume, e as almas continuam, desde sempre, esticadas no curtume. Valem ainda as palavras do compositor Paul Dukas, há cem anos: "O desenvolvimento temático [da ópera" se dá não apenas do ponto de vista musical, mas profundamente psicológico, e inteiramente novo". Mas valem, agora, de um jeito inteiramente novo, em profundezas das quais não se sai nunca mais.

Pélleas et Mélisande, de Debussy     
Artista: Boulez, Stein, Welsh National Opera
Lançamento: Universal
Quanto: R$ 67, em média (dois DVDs)

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