São Paulo, sábado, 04 de março de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Texto desmascara a falsa esperteza da política

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Como uma peça que depende tanto do conhecimento da história da Inglaterra entre 1483 e 1485 pode ser uma das mais representadas de Shakespeare? O que ele fez para que se mantivesse o interesse ao longo dos séculos por esse conflito entre a rosa branca de York e a rosa vermelha dos Lancaster, lutando pelo trono inglês?
Em princípio, Shakespeare estava preocupado apenas com seus contemporâneos: em 1593, na estréia de Ricardo 3º, os ingleses eram recentes donos do mar, a popularidade da rainha Elisabeth se multiplicava e era preciso estabelecer parâmetros para o comportamento dos reis. Ao longo da carreira escreveu então nove peças históricas, e se Henrique 5º (1599) é um modelo do rei virtuoso, Ricardo encarna todos os vícios a evitar. Assim, desfilam assassinos de crianças, conspiradores e uma rainha-mãe, Margarida, que surge como o fantasma de um passado sangrento.
Surpreende antes de tudo a modernidade como o assunto é abordado: não há nada de divino nesses reis, e o jogo do poder é analisado como um mero conflito de desejos individuais, tornando a crise política uma inevitabilidade cíclica. A história, cheia de som e de fúria, é feita pela manipulação do acaso.
De toda a galeria shakespeariana, Ricardo é o mais maquiavélico. Não se deixa cegar pela ambição, como Macbeth, nem hesita diante do assassinato a cumprir, como Hamlet. Acumulando as funções de protagonista e coro, dirige-se desde o começo da peça diretamente ao público, a quem se apresenta como vilão, descrevendo sua deformidade física com amarga auto-ironia: é bufão de si mesmo.
Com esse estranho charme desmascara assim as perfídias da ambição política, mostrando como são fúteis as raízes do que pode degenerar em poder despótico. "Meu reino por um cavalo", diz, ao perceber que o controle sobre a montaria vale mais que a coroa. Uma vez menosprezado esse autocontrole, toda esperteza "política" soa pueril -e o público moderno sabe imediatamente por outro rosto naquele que nega ser candidato ao trono, para dar impressão de ser levado a ele por vontade do povo. Os reinos e os cavalos passam, mas não há nada de novo sob esse sol de York.


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Ágora destaca mulheres e cidadãos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.