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Texto desmascara a falsa esperteza da política
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Como uma peça que depende
tanto do conhecimento da história da Inglaterra entre 1483 e 1485
pode ser uma das mais representadas de Shakespeare? O que ele
fez para que se mantivesse o interesse ao longo dos séculos por esse conflito entre a rosa branca de
York e a rosa vermelha dos Lancaster, lutando pelo trono inglês?
Em princípio, Shakespeare estava preocupado apenas com seus
contemporâneos: em 1593, na estréia de Ricardo 3º, os ingleses
eram recentes donos do mar, a
popularidade da rainha Elisabeth
se multiplicava e era preciso estabelecer parâmetros para o comportamento dos reis. Ao longo da
carreira escreveu então nove peças históricas, e se Henrique 5º
(1599) é um modelo do rei virtuoso, Ricardo encarna todos os vícios a evitar. Assim, desfilam assassinos de crianças, conspiradores e uma rainha-mãe, Margarida,
que surge como o fantasma de um
passado sangrento.
Surpreende antes de tudo a modernidade como o assunto é abordado: não há nada de divino nesses reis, e o jogo do poder é analisado como um mero conflito de
desejos individuais, tornando a
crise política uma inevitabilidade
cíclica. A história, cheia de som e
de fúria, é feita pela manipulação
do acaso.
De toda a galeria shakespeariana, Ricardo é o mais maquiavélico. Não se deixa cegar pela ambição, como Macbeth, nem hesita
diante do assassinato a cumprir,
como Hamlet. Acumulando as
funções de protagonista e coro,
dirige-se desde o começo da peça
diretamente ao público, a quem
se apresenta como vilão, descrevendo sua deformidade física
com amarga auto-ironia: é bufão
de si mesmo.
Com esse estranho charme desmascara assim as perfídias da ambição política, mostrando como
são fúteis as raízes do que pode
degenerar em poder despótico.
"Meu reino por um cavalo", diz,
ao perceber que o controle sobre a
montaria vale mais que a coroa.
Uma vez menosprezado esse autocontrole, toda esperteza "política" soa pueril -e o público moderno sabe imediatamente por
outro rosto naquele que nega ser
candidato ao trono, para dar impressão de ser levado a ele por
vontade do povo. Os reinos e os
cavalos passam, mas não há nada
de novo sob esse sol de York.
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