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Os subúrbios do homem
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Nunca houve adultério como o
de Capitu, nem mesmo o de Ema
Bovary ou o de Ana Karenina. Por
um motivo simples: foi um adultério que não houve. Não se trata de
jogo de palavras, mas de uma das
muitas armadilhas de Machado de
Assis. Há cem anos, sobretudo nos
últimos 30, é um dos temas mais
discutidos de nosso imaginário.
Se há um defunto que tem motivos para rir dos vivos é aquele a
quem o lugar-comum decidiu chamar de ""bruxo do Cosme Velho".
Ele criou uma personagem ambígua, de olhos oblíquos e dissimulados. Tudo nela é e não é ao mesmo
tempo. Mas leitores e críticos há
cem anos decidem que ela é inocente ou culpada, apesar de Machado a ter feito culpada-inocente.
Quem está certo é Fernando Sabino, que chegou à conclusão de
que ela é culpada e reescreveu para
si mesmo a história de ""Dom Casmurro". Ele me mandou os originais de seu livro, e eu admirei a sua
coragem e o seu raciocínio. Cada
um que faça e refaça a sua Capitu: é
um direito. Mas deixem a Capitu
de Machado de Assis ser como é:
oblíqua e dissimulada.
Guimarães Rosa criou um personagem feminino que se vestia e
agia como homem. Era uma ""nuvem", no dizer de Riobaldo. Tudo
bem. Machado de Assis achava que
era melhor cair de uma nuvem do
que de um terceiro andar. Criou
Capitu.
Numa releitura de ""Grande Sertão: Veredas", já sabemos que Diadorim é um jagunço especial. Pão
pão, queijo queijo. Quando relemos ""Dom Casmurro", ficamos
sabendo cada vez menos. Se perdermos a paciência, como Fernando Sabino perdeu, então o melhor
é fazermos a nossa Capitu e esquecer a de Machado de Assis.
Contudo o charme do romance
não se limita a um adultério inexistente ou a uma inocência que não
existiu. O melhor do livro é ""a história dos subúrbios" que Bentinho
promete escrever e nunca escreveu, embora a ameace mais uma
vez na última frase do livro. Como
Dostoiévski, que foi o romancista
do subsolo de cada homem, Machado é o cronista dissimulado dos
subúrbios que todo homem carrega dentro de si.
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