São Paulo, Quinta-feira, 04 de Março de 1999
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Os subúrbios do homem

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Nunca houve adultério como o de Capitu, nem mesmo o de Ema Bovary ou o de Ana Karenina. Por um motivo simples: foi um adultério que não houve. Não se trata de jogo de palavras, mas de uma das muitas armadilhas de Machado de Assis. Há cem anos, sobretudo nos últimos 30, é um dos temas mais discutidos de nosso imaginário.
Se há um defunto que tem motivos para rir dos vivos é aquele a quem o lugar-comum decidiu chamar de ""bruxo do Cosme Velho". Ele criou uma personagem ambígua, de olhos oblíquos e dissimulados. Tudo nela é e não é ao mesmo tempo. Mas leitores e críticos há cem anos decidem que ela é inocente ou culpada, apesar de Machado a ter feito culpada-inocente.
Quem está certo é Fernando Sabino, que chegou à conclusão de que ela é culpada e reescreveu para si mesmo a história de ""Dom Casmurro". Ele me mandou os originais de seu livro, e eu admirei a sua coragem e o seu raciocínio. Cada um que faça e refaça a sua Capitu: é um direito. Mas deixem a Capitu de Machado de Assis ser como é: oblíqua e dissimulada.
Guimarães Rosa criou um personagem feminino que se vestia e agia como homem. Era uma ""nuvem", no dizer de Riobaldo. Tudo bem. Machado de Assis achava que era melhor cair de uma nuvem do que de um terceiro andar. Criou Capitu.
Numa releitura de ""Grande Sertão: Veredas", já sabemos que Diadorim é um jagunço especial. Pão pão, queijo queijo. Quando relemos ""Dom Casmurro", ficamos sabendo cada vez menos. Se perdermos a paciência, como Fernando Sabino perdeu, então o melhor é fazermos a nossa Capitu e esquecer a de Machado de Assis.
Contudo o charme do romance não se limita a um adultério inexistente ou a uma inocência que não existiu. O melhor do livro é ""a história dos subúrbios" que Bentinho promete escrever e nunca escreveu, embora a ameace mais uma vez na última frase do livro. Como Dostoiévski, que foi o romancista do subsolo de cada homem, Machado é o cronista dissimulado dos subúrbios que todo homem carrega dentro de si.


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