São Paulo, Quinta-feira, 04 de Março de 1999
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"DOM CASMURRO",100

Hoje isso tem o nome de "crítica-ficção"

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Em outros tempos, dava-se a isso o nome de "imitação", simplesmente; de "exercício" literário para estudantes, quando muito. Hoje, querem chamar de "ficção da ficção", de "crítica-ficção" ou de "recriação literária". Seja lá que nome tenha, é a coisa mais estranha de que já tive notícia, nem tanto pelo texto quanto pelo objetivo dos autores.
De uma hora para outra, o escritor Fernando Sabino e o professor de português Domício Proença Filho resolveram reescrever -cada um "na sua"- o livro "Dom Casmurro", de Machado de Assis.
Não sei se os autores se consultaram sobre a coincidência das "reescritas": "Amor de Capitu" (de Sabino) e "Capitu - Memórias Póstumas" (de Proença Filho).
Mas isso pouco importa. Como também não importa que o lançamento do livro de Sabino (em setembro do ano passado) tenha se antecipado ao de Proença Filho (que saiu pouco depois). Importa achar algum sentido para a empreitada. O primeiro (e fraco) que se levanta é o de que ambos os livros são uma "homenagem" a Machado, no ano em que "Dom Casmurro" completa 100 anos.
Lançado em 1900, "Dom Casmurro" é a narração em primeira pessoa feita pelo personagem Bentinho de sua história, ele que, de adolescente apaixonado e alegre, vira o sisudo Dom Casmurro depois de apanhar da vida, de se achar traído pela mulher,Capitu, e pelo melhor amigo, Escobar.
A narrativa desse triângulo amoroso consagra a figura de Capitu, um primor de caracterização de personagem, ícone do realismo de ênfase psicológica de Machado. As duas "recriações" de "Dom Casmurro" centram-se exatamente no mito de Capitu e seus "olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada". O livro de Proença Filho é mais prolixo e mais literal (algumas passagens são praticamente idênticas), além de fazer referências a outras obras de Machado e a outras personagens femininas da literatura brasileira.
Ele põe a narração na boca da própria Capitu e agarra-se na brecha da dúvida deixada pelo romance original: não há, na obra machadiana, provas de que Capitu tenha cometido adultério. Valendo-se disso, Proença Filho faz uma espécie de libelo feminista, uma vingança da Capitu que teria por objetivo restaurar sua imagem de leviana criada por Bentinho.
A narrativa de Fernando Sabino é mais econômica, mais grave (e mais ambiciosa, parece). Ele simplesmente reescreve a obra em terceira pessoa, na voz de um narrador externo ao texto machadiano. O objetivo de Sabino está expresso nestas suas palavras sobre "Dom Casmurro": "O que sempre me atraiu neste romance admirável foi descobrir até que ponto a dúvida sobre a infidelidade de Capitu teria sido premeditada por um narrador tão evasivo e casmurro...".
Para quê? Eis a questão. Ou os autores querem aparecer às custas do grande Machado ou têm tempo de sobra para fazer besteira. Nem o livro de Sabino nem o de Proença Filho chegam aos pés de "Dom Casmurro". Na verdade, como afirma o crítico Alfredo Bosi, um romance de Machado de Assis não se deve nem resumir ("Como fazê-lo se o que neles importa não é o fato em si, mas a constelação de intenções e de ressonâncias que o envolve?"), quanto mais reescrever ou "recriar", como quiseram fazer.


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