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"DOM CASMURRO",100
Hoje isso tem o nome de "crítica-ficção"
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
Em outros tempos, dava-se a isso
o nome de "imitação", simplesmente; de "exercício" literário para estudantes, quando muito. Hoje, querem chamar de "ficção da
ficção", de "crítica-ficção" ou de
"recriação literária". Seja lá que
nome tenha, é a coisa mais estranha de que já tive notícia, nem tanto pelo texto quanto pelo objetivo
dos autores.
De uma hora para outra, o escritor Fernando Sabino e o professor
de português Domício Proença Filho resolveram reescrever -cada
um "na sua"- o livro "Dom Casmurro", de Machado de Assis.
Não sei se os autores se consultaram sobre a coincidência das
"reescritas": "Amor de Capitu" (de
Sabino) e "Capitu - Memórias Póstumas" (de Proença Filho).
Mas isso pouco importa. Como
também não importa que o lançamento do livro de Sabino (em setembro do ano passado) tenha se
antecipado ao de Proença Filho
(que saiu pouco depois). Importa
achar algum sentido para a empreitada. O primeiro (e fraco) que
se levanta é o de que ambos os livros são uma "homenagem" a Machado, no ano em que "Dom Casmurro" completa 100 anos.
Lançado em 1900, "Dom Casmurro" é a narração em primeira
pessoa feita pelo personagem Bentinho de sua história, ele que, de
adolescente apaixonado e alegre,
vira o sisudo Dom Casmurro depois de apanhar da vida, de se
achar traído pela mulher,Capitu, e
pelo melhor amigo, Escobar.
A narrativa desse triângulo amoroso consagra a figura de Capitu,
um primor de caracterização de
personagem, ícone do realismo de
ênfase psicológica de Machado. As
duas "recriações" de "Dom Casmurro" centram-se exatamente no
mito de Capitu e seus "olhos de
ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada". O livro de Proença Filho
é mais prolixo e mais literal (algumas passagens são praticamente
idênticas), além de fazer referências a outras obras de Machado e a
outras personagens femininas da
literatura brasileira.
Ele põe a narração na boca da
própria Capitu e agarra-se na brecha da dúvida deixada pelo romance original: não há, na obra
machadiana, provas de que Capitu
tenha cometido adultério. Valendo-se disso, Proença Filho faz uma
espécie de libelo feminista, uma
vingança da Capitu que teria por
objetivo restaurar sua imagem de
leviana criada por Bentinho.
A narrativa de Fernando Sabino
é mais econômica, mais grave (e
mais ambiciosa, parece). Ele simplesmente reescreve a obra em terceira pessoa, na voz de um narrador externo ao texto machadiano.
O objetivo de Sabino está expresso
nestas suas palavras sobre "Dom
Casmurro": "O que sempre me
atraiu neste romance admirável foi
descobrir até que ponto a dúvida
sobre a infidelidade de Capitu teria
sido premeditada por um narrador tão evasivo e casmurro...".
Para quê? Eis a questão. Ou os
autores querem aparecer às custas
do grande Machado ou têm tempo
de sobra para fazer besteira. Nem o
livro de Sabino nem o de Proença
Filho chegam aos pés de "Dom
Casmurro". Na verdade, como
afirma o crítico Alfredo Bosi, um
romance de Machado de Assis não
se deve nem resumir ("Como fazê-lo se o que neles importa não é o fato em si, mas a constelação de intenções e de ressonâncias que o envolve?"), quanto mais reescrever
ou "recriar", como quiseram fazer.
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