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São Paulo, sexta-feira, 04 de abril de 2003

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"O DESPREZO"

Godard mergulha em babel de linguagens

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Em "O Desprezo" falam-se quatro línguas: francês, inglês, alemão e italiano. Por isso existe ali uma personagem cuja função quase única é transpor os diálogos de um para a língua do outro. Daí existir um equívoco de critério dos responsáveis pela cópia, que estréia hoje em São Paulo. Quando Jack Palance fala, em inglês, vemos o letreiro com a tradução de suas palavras para o português. Em seguida, Georgia Moll faz a tradução para o francês, e o mesmo diálogo, ou quase, volta a aparecer em português.
Esse equívoco está longe de ser insignificante ou incômodo (embora possa ser alegremente superado pelo espectador). Por sorte, as palavras que Fritz Lang diz em alemão ficam sem letreiros de tradução e só se deixam compreender quando Georgia Moll as verte para o idioma do interlocutor.
Criam-se então segundos de vazio. Porque "O Desprezo" é um filme sobre a incompreensão. Sobre palavras que, ditas em uma língua, nada significam.
Há ali um produtor de cinema, Jeremy Prokosch (Jack Palance), que não se comunica com o seu diretor (Lang). Existe também um marido, Paul (Michel Piccoli), que não se entende com Camille, sua mulher (Brigitte Bardot).
E por que não se entendem? No estúdio, Prokosch, paquera Camille e a convida para ir à sua casa. Paul consente que ela vá no carro de Jeremy e se dispõe a seguir até lá de táxi. Fim: o amor está terminado. Paul jamais entenderá por quê. Camille não lhe dirá a razão. Mas o desprezará.
Enquanto isso, Lang filma. Sua concepção da "Odisséia" é, em linhas gerais, a mesma de seus filmes: o combate desigual do homem contra os deuses. Bem diferente da do produtor, empenhado em inserir na trama cenas de sexo que seduzam o espectador.
E por que seria "O Desprezo" um filme de amor se, já no início, Jean-Luc Godard nos garante, citando André Bazin, que o cinema substitui o nosso olhar? Nesse caso, o cinema mostra o mundo dos nossos desejos, não o real.
O cinema não pode filmar apenas a realidade objetiva, nem o desejo simplesmente. Nessa medida, "O Desprezo" é também um filme sobre o cinema e seu mundo. Talvez o mais belo jamais filmado. Mais belo e comovente até que "Assim Estava Escrito". Mas não parece ser apenas no cinema que Godard pensa. Uma frase de Lumière aparece como a dizer que o homem é uma invenção sem futuro. Pois o desígnio irônico dos deuses assim o quer. Ou porque esse filme evoca uma outra mitologia, mergulhando seus personagens numa babel de linguagens perfeitas, mas incapazes de estabelecer contato entre os homens. "O Desprezo" é, como se vê, um filme muito atual.


O Desprezo
Le Mépris
    
Produção: França/Itália, 1963
Direção: Jean-Luc Godard
Com: Brigitte Bardot e Jack Palance
Quando: a partir de hoje no Top Cine 2



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