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"O DESPREZO"
Godard mergulha em babel de linguagens
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Em "O Desprezo" falam-se
quatro línguas: francês, inglês, alemão e italiano. Por isso
existe ali uma personagem cuja
função quase única é transpor os
diálogos de um para a língua do
outro. Daí existir um equívoco de
critério dos responsáveis pela cópia, que estréia hoje em São Paulo.
Quando Jack Palance fala, em inglês, vemos o letreiro com a tradução de suas palavras para o
português. Em seguida, Georgia
Moll faz a tradução para o francês,
e o mesmo diálogo, ou quase, volta a aparecer em português.
Esse equívoco está longe de ser
insignificante ou incômodo (embora possa ser alegremente superado pelo espectador). Por sorte,
as palavras que Fritz Lang diz em
alemão ficam sem letreiros de tradução e só se deixam compreender quando Georgia Moll as verte
para o idioma do interlocutor.
Criam-se então segundos de vazio. Porque "O Desprezo" é um
filme sobre a incompreensão. Sobre palavras que, ditas em uma
língua, nada significam.
Há ali um produtor de cinema,
Jeremy Prokosch (Jack Palance),
que não se comunica com o seu
diretor (Lang). Existe também
um marido, Paul (Michel Piccoli),
que não se entende com Camille,
sua mulher (Brigitte Bardot).
E por que não se entendem? No
estúdio, Prokosch, paquera Camille e a convida para ir à sua casa. Paul consente que ela vá no
carro de Jeremy e se dispõe a seguir até lá de táxi. Fim: o amor está terminado. Paul jamais entenderá por quê. Camille não lhe dirá
a razão. Mas o desprezará.
Enquanto isso, Lang filma. Sua
concepção da "Odisséia" é, em linhas gerais, a mesma de seus filmes: o combate desigual do homem contra os deuses. Bem diferente da do produtor, empenhado em inserir na trama cenas de
sexo que seduzam o espectador.
E por que seria "O Desprezo"
um filme de amor se, já no início,
Jean-Luc Godard nos garante, citando André Bazin, que o cinema
substitui o nosso olhar? Nesse caso, o cinema mostra o mundo dos
nossos desejos, não o real.
O cinema não pode filmar apenas a realidade objetiva, nem o
desejo simplesmente. Nessa medida, "O Desprezo" é também um
filme sobre o cinema e seu mundo. Talvez o mais belo jamais filmado. Mais belo e comovente até
que "Assim Estava Escrito". Mas
não parece ser apenas no cinema
que Godard pensa. Uma frase de
Lumière aparece como a dizer
que o homem é uma invenção
sem futuro. Pois o desígnio irônico dos deuses assim o quer. Ou
porque esse filme evoca uma outra mitologia, mergulhando seus
personagens numa babel de linguagens perfeitas, mas incapazes
de estabelecer contato entre os
homens. "O Desprezo" é, como se
vê, um filme muito atual.
O Desprezo
Le Mépris
Produção: França/Itália, 1963
Direção: Jean-Luc Godard
Com: Brigitte Bardot e Jack Palance
Quando: a partir de hoje no Top Cine 2
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