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'Olhar, registrar, fixar' é lema do narrador
ANTOINE DE GAUDEMAR
do ``Libération''
A ``baía de ninguém'' fica a oeste
de Paris, em algum lugar situado
entre Meudon e Versailles, entre a
cidade e os bosques. Nem o lugar,
nem o nome figuram em nenhum
mapa ou placa de sinalização. Mas
a baía existe na topografia de Peter
Handke: é um anfiteatro natural
de colinas que descem docemente
em direção ao rio e à capital. Situada a cinco minutos da torre Eiffel,
em linha reta, essa região de
Hauts-de Seine, aparentemente
sem qualidade e sem história, mas
que se mantém escondida e secreta, é, no entanto, única e especial, a
ponto de fazer quem a percorre esquecer qualquer saudade de sua
própria terra.
O narrador de ``Mon Année
dans la Baie de Personne'' (O Ano
que Passei na Baía de Ninguém) é
austríaco de origem, jurista por
formação e trabalhou como diplomata, notadamente na Mongólia.
Viajou muito antes de decidir instalar-se em Paris, onde, ``desde o
momento em que cheguei, nada se
opunha a mim ou me excluía; nem
o mais pequeno elemento se interpunha entre essa capital mundial e
eu, que, nela, me senti aberto ao
mundo''. Pouco a pouco, começou
a aventurar-se fora da cidade, explorando suas margens, em busca
de um lugar para morar. Não demorou a pressentir nos subúrbios
parisienses algo como ``um silêncio sob forma de vento, ainda desconhecido e não descrito''.
Anos mais tarde, Handke vai viver na famosa ``baía de ninguém''
e resolve dedicar sua vida a ela por
um ano, 1997 (ou seja, foi uma ligeira projeção, já que o livro foi
lançado na Alemanha em 1994).
Em pouco tempo, percebe que é
impossível fazer apenas sua crônica objetiva, sem misturar elementos próprios a ela ``para conferir a
vulnerabilidade necessária à coisa''. Mas como a narrativa tradicional lhe parece gasta, não vê
``outra solução senão o retorno à
idéia primordial, do puro testemunho ocular: olhar, registrar, fixar''. Decide deixar as coisas, os lugares, os habitantes serem o que
são. Paralelamente, ele próprio se
apaga; está numa fase problemática, flutuante, nostálgica, tendo
muita dificuldade em falar de si
mesmo no passado e até mesmo
no presente. Vive uma espécie de
metamorfose. Estará em processo
de tornar-se ``ninguém''? O livro é
feito desse testemunho e dessa
busca interior, que precedem a
história da vida do narrador e de
sete de seus amigos, que vão se
reencontrar, todos, para um banquete final na ``baía de ninguém''.
Aos olhos do narrador -e, ao
que tudo indica, aos do próprio escritor-, esse recanto suburbano
se ergue como ``um interior mais
estrangeiro do que todos os lugares que eu havia conhecido em
meus anos de viajante, por mais
longínquos que fossem''.
Até mesmo nas suas mais banais
e minúsculas manifestações, o
mundo se abre a ele como espetáculo permanente que ele absorve e
no qual é absorvido. Sentinela solitária, espectador contumaz, ``esperador'' vazio, é assim que ele se
vê: ``Durante minha vida toda fui
dolorosamente atormentado pelo
fato de que o mundo era inacessível, que me excluía. Era esse meu
problema essencial. Foram tão raras as vezes em que me senti pertencendo ao mundo, fazendo parte, agindo dentro dele, que, cada
vez que isso aconteceu, foi um
grande momento para mim, digno
de ser transmitido à posteridade''.
Tradução de Clara Allain
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