São Paulo, sexta, 4 de abril de 1997.

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MULTIMÍDIA
"A Europa morreu com a Iugoslávia", diz Peter Handke

ANTOINE DE GAUDEMAR
do ``Libération''

No final de 1995, o escritor Peter Handke fez uma viagem à Sérvia, ainda em guerra, que depois relatou em vários episódios nas colunas do jornal alemão ``Suddeutsche Zeitung''. Esses artigos, pouco depois retomados em dois volumes dos quais apenas o primeiro foi traduzido em francês (``Un Voyage Hivernal vers le Danube, la Save, la Morava e la Drina'', Gallimard, 1996), suscitaram violenta polêmica na Europa.
Assim, num artigo sobre o engajamento de intelectuais na guerra na ex-Iugoslávia, escrevemos que Peter Handke, depois de defender (desde 1991) a unidade da Iugoslávia, acabara tornando-se ``abertamente pró-sérvio, indo ao ponto de negar a existência das valas comuns em seu livro `Justice pour la Serbie'''.
Ele acusa intelectuais e jornalistas de não terem denunciado ``o extermínio da população sérvia da Bósnia''. Em uma carta ao jornal, Peter Handke protestou com veemência, destacando que em seu livro ``fala duas vezes de Srbrenica: na página 90, onde uma habitante de uma cidade sérvia de fronteira `estava convencida de que lá, perto de Srbrenica, milhares de pessoas haviam sido assassinadas', e na página 114, onde uma pessoa pergunta: `Mas você não vai colocar em dúvida o massacre de Srbrenica, vai?''. Resposta: ``não''.
Do mesmo modo, afirma que jamais acusou o mundo do ``extermínio da população sérvia da Bósnia'', mas apenas citou a carta de despedida de um suicida sérvio, em outubro de 1992. Conclui dizendo: ``Não posso deixar de refletir sobre essas duas afirmações contrárias, de enxergar analogias e paralelos em muitos artigos sobre a própria guerra na Iugoslávia''.
Na ocasião da tradução do livro ``Mon Année dans la baie de Personne'' para o francês, Peter Handke explicitou suas posições.

Pergunta - Por que o senhor viajou à Sérvia em plena guerra?
Peter Handke -
Eu estava querendo ir à Sérvia desde o início da guerra. Houve Vukovar, houve Sarajevo. Todo o mundo centrou suas atenções em Sarajevo. Mas a guerra foi ainda mais terrível nos povoados situados na linha de frente ou em Mostar, completamente destruída pelos combates entre croatas e muçulmanos.
É bom que se fale de Sarajevo, mas é preciso deixar tudo muito claro. Quase ninguém contou o que se passou com a Sérvia durante essa guerra, salvo para procurar quantificar seus crimes. Quanto retornei, enquanto atravessava a Hungria, depois a Áustria e a Alemanha, percebi que essa falta de informações era tão grande que decidi escrever. Fragmentos, climas, empatias.
Eu queria abrir e ampliar o campo de visão. A história dessa guerra não foi escrita ainda. E é uma injúria ser qualificado de revisionista quando se afirma esse fato. Com a exceção do Holocausto, a história nunca é definitiva, sobretudo nos Bálcãs.
Além disso, as pessoas começam a dar-se conta disso, através de artigos que retomam os fatos considerados como certos ou mesmo certos processos julgados pelo tribunal internacional de Haia, que faz o que lhe é possível.
Fui para lá há duas semanas para assistir ao primeiro processo em que as vítimas são sérvios da Bósnia. Pelo que eu saiba, é a primeira vez que um membro de uma população que sempre foi martirizada pelos turcos, os austríacos, os nazistas e seus aliados croatas é internacionalmente reconhecido como vítima.
Pergunta - Existe lugar para um escritor num país em guerra?
Handke -
Não sou jornalista, nem juiz, nem historiador. Sou escritor, e foi na condição de escritor que fui à Sérvia. Faltou um Camus nessa guerra, para recolocar as perguntas de outra forma. Para deixar de simplificar. Por exemplo, ao assistir a uma missa ortodoxa, compreendi como essa religião é introvertida nesse país e como ela exerce influência sobre uma população inteira, enquanto os católicos e muçulmanos da Iugoslávia são muito extrovertidos. Devido a sua introversão religiosa e geográfica, os sérvios não sabem se explicar. Da mesma maneira, a relação que têm com seus mortos, especialmente nos cemitérios, revela que possuem uma concepção diferente do tempo: para eles, as vítimas do nazismo e as de quatro anos atrás ainda não estão mortas, estão morrendo agora.
Os sérvios não entenderam que a história continuou, eles não se deram conta de que é preciso acabar com ela. E talvez tenham razão em não compreender a história como nós a compreendemos.
Pergunta - O senhor sente uma responsabilidade especial?
Handke -
Todos nós fomos inconscientes, prisioneiros de nossas opiniões. Desde o início, não levamos as coisas suficientemente a sério, a começar por mim. Como pude deixar meus amigos austríacos se entusiasmarem com a Eslovênia, sem reagir?
Como se poderia ter evitado a tragédia, já que se tratava de fragmentar a Iugoslávia? Como os 600 mil sérvios que viviam na Croácia poderiam viver a divisão senão como uma tragédia que levaria à guerra e aos massacres? O paradoxo dessa guerra é que ela me levou a descobrir um escritor, um dos maiores do século, Ivo Andric, que era croata e tão fatalista que tornou-se revolucionário.
Em Sarajevo as pessoas detestam Ivo Andric, que, no entanto, é quem tem a maior empatia por todos os iugoslavos, mas que ousou criticar a influência otomana sobre os sérvios e os croatas e explicar que boa parte da burguesia urbana sérvia se converteu ao islamismo para melhor aproveitar as riquezas do império turco. É preciso reconhecer, com Brecht, que, de vez em quando, é a economia qe manda.
A guerra na Bósnia foi muitas vezes apresentada como um conflito entre camponeses sérvios, ignorantes e frustrados, e burgueses urbanos cosmopolitas. Mas isso é um mito. Pode-se acusar o general Mladic de todos os crimes, mas não de ser um camponês rancoroso.
O que significa ser cosmopolita? Se havia uma cidade cosmopolita na Iugoslávia, era Belgrado, e a própria idéia da Iugoslávia é uma idéia cosmopolita. Para mim, a Europa morreu com a Iugoslávia.
Pergunta - Por que ir a Pale e não a Sarajevo?
Handke -
Fui a Sarajevo há alguns meses, convidado por um amigo austríaco que foi nomeado embaixador nessa cidade e que, como eu, integra a minoria eslava da Caríntia. Ele me apresentou a várias pessoas, entre elas algumas que, a priori, não queriam me ver. Não tenho nada contra a religião muçulmana em si -li as obras de muitos místicos dessa religião-, mas acredito que Sarajevo vá tornar-se uma cidade islâmica, e a Bósnia, um Estado ideológico agressivo. Esse é o projeto de Izetbegovic.
Pergunta - Para o senhor, essa história já terminou?
Handke -
Acho que não. Talvez eu continue, escrevendo uma peça de teatro para mostrar todas essas visões da guerra, todas essas representações. Talvez também retorne à Bósnia, a Banja Luka, a única grande cidade sérvia da Bósnia, e escreva sobre ela. Não se deve deixar os sérvios isolados, sobretudo não na Bósnia.
Evidentemente, seus líderes são responsáveis, em grande medida, por essa situação, assim como também o são os líderes muçulmanos e croatas da Bósnia. Mas é preciso ir vê-los, e sobretudo falar com eles. A população sérvia na Bósnia precisa ser ouvida.


Tradução de Clara Allain
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