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BIENAL DO LIVRO
"TERRA E CINZAS"
Atiq Rahimi apresenta hoje seu primeiro romance, em que fala dos efeitos da invasão russa dos anos 80
Afegão remove pó de dor pré-Taleban
FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Atiq Rahimi chega para a entrevista vestido com cores claras,
uma echarpe de tecido bege, sandálias. Aos 40 anos, depois de 18
anos exilado em Paris, o escritor e
cineasta afegão poderia passar
por um francês que cultua um interesse pelo Oriente.
A impressão se dissipa diante da
crueza de "Terra e Cinzas", seu
primeiro romance. Lançado no
começo do ano no Brasil -e
apresentado hoje, na Bienal do Livro de São Paulo-,o livro prova
o que Rahimi afirma sem hesitar:
"A terra fica na gente".
No livro, Dastaguir e seu neto,
Yassin, tentam chegar à mina onde está o pai da criança, Murad. A
missão do avô é dura, (como "enterrar um punhal no coração do
próprio filho"): contar a Murad
que a família morreu num bombardeio à sua aldeia. Que só sobraram ele, o velho e a criança
-esta, ensurdecida pelo ataque,
não entende que perdeu a audição: crê que a guerra tira a voz dos
que poupou da morte.
O foco narrativo é o do avô. Habilmente, Rahimi escapa da primeira pessoa, do subjetivismo
melodramático, e conta a história
do ponto de vista de Dastaguir,
numa espécie de diálogo do velho
consigo mesmo. O resultado é tocante, mas não sentimentalista.
Em entrevista à Folha, Rahimi
conta que, nos primeiros anos
após sua fuga -à pé, do Afeganistão para o Paquistão, onde pediu asilo político à França-, em
1984, o exílio lhe roubou a escrita.
Além da barreira da língua, havia um sentimento de distanciamento íntimo de seu país. Só com
a tomada de poder pelo Taleban,
em 1996, pôde retomar a atividade literária, iniciada quando ainda era o menino de 12 anos, filho
de uma professora e de um governador de província, estudando no
liceu francês, em Cabul.
Abismado pela "destruição de
identidade" que viu na ação da
milícia islâmica, foi numa espécie
de procedimento catártico que
deu à luz "Terra e Cinzas". Foi
também quando mesmo seus documentários, que no início tinham temas "franceses" -como
os artistas de rua em Paris-, passaram a falar para o mundo sobre
seu país. "Desde 96, quando o Taleban tomou o poder e o mundo
todo ficou mudo, foquei tudo no
Afeganistão. Eu posso dizer que,
mesmo se não fosse afegão, me
bateria pelo Afeganistão."
Em sua ficção, porém, não se vê
a militância explícita. O caminho
é o da dor interiorizada, tanto no
retrato que "Terra e Cinzas" faz
do período da invasão russa, entre
os anos 70 e 80, como, assegura,
quando enfoca a ascensão do Talebã, tema de seu segundo livro,
recém-lançado na França.
Em "Les Milles Maisons du Rêve et de la Terreur" (As Mil Casas
do Sonho e do Terror, a sair aqui
pela mesma Estação Liberdade),
Rahimi escolhe o ponto de vista
feminino, ausente do primeiro livro, para falar da destruição da intimidade pelo terror religioso.
Trabalhando na adaptação de
"Terra e Cinzas" para cinema -o
filme começa a ser rodado em setembro e será seu primeiro longa
de ficção-, Rahimi pôde, há
poucos meses, retornar a Cabul
pela primeira vez em 18 anos.
"Na minha opinião, os artistas
vivem sempre no exílio, mesmo
nos seus próprios países. O imaginário é outro mundo. Ser exilado
em outro país é normal. Se não
me sentisse exilado em minha
própria terra, nunca a deixaria."
Já sobre a ascensão da extrema
direita na França, Rahimi responde com mais humor: "Já refleti e,
no pior dos casos, vou pedir asilo
político ao Afeganistão!"
Folha - Ao chegar à França, o sr.
deixou de escrever. Como foi que o
sr. retomou o hábito da escrita e
publicou "Terra e Cinzas"?
Atiq Rahimi - Eu havia escrito
para mim mesmo, para me liberar
de reflexões que tinha sobre meu
país. Também por uma espécie de
luto pela guerra e de busca dos
motivos por que o Afeganistão
caíra em tal violência. Não foi escrito para ser publicado. Foi Sabrina Nouri, a tradutora francesa,
que o leu e decidiu traduzir.
Folha - Há uma história real por
trás da que conta em seu livro?
Rahimi - No começo dos anos 80,
eu estava no norte do Afeganistão, para fazer uma reportagem
sobre a vida dos mineiros. Todas
as manhãs, atravessávamos uma
ponte para chegar à mina e, um
dia, vi um velho sentado no parapeito da ponte e, a seu lado, um
menino. Eles eram como descrevo no livro: o velho tinha um
olhar um pouco perdido e o menino, um olhar interrogativo.
Folha - Por que optou por narrar
"Terra e Cinzas" como um diálogo
de Dastaguir consigo mesmo?
Rahimi - Primeiro eu escrevi em
terceira pessoa. Depois eu vi que
não funcionava, porque o rasgo
interior do personagem não saía
bem. Eu buscava como representar essa clivagem entre o que se é e
o que se deve ou não ser, o que se
diz e o que não se deve dizer. Não
acontece, às vezes, de se olhar no
espelho e falar com você mesma?
Para mim, era um pouco isso. A
caixa do naswar [mistura narcótica" que ele masca tem um espelho
na tampa. Ele se olha, se descreve.
É o personagem diante de sua
consciência, futuro, passado.
Folha - Muitas ficções sobre a
guerra são contadas por crianças. O
sr. não se sentiu tentado a usar o
foco narrativo de Yassin?
Rahimi - Agora estou escrevendo
o roteiro de "Terra e Cinzas" e
uma coisa que gostaria muito de
fazer seria um filme mudo, todo
do ponto de vista de Yassin. Não
tem graça refazer a mesma coisa
que eu já escrevi, é preciso ir além.
Folha - Como seu cinema e sua literatura interagem?
Rahimi - Eu sempre tento, quando faço documentários, encontrar uma forma de narração particular. Não busco repetir minha
escrita, mas achar minha linguagem na imagem. Eu busquei o cinema meio por obrigação. Não é
uma linguagem inata, como a escrita, mas adquirida. A imagem
tem sido para mim uma linguagem de sobrevivência, enquanto a
escrita é a linguagem de vida.
TERRA E CINZAS - ("Terre et Cendres",
Paris, 2000) de Atiq Rahimi. Editora:
Estação Liberdade (tel. 0/xx/11/ 3661-2881). 80 págs. R$ 18. O autor apresenta
o livro no Salão de Idéias da Travessa
Literária, hoje, às 18h30, na Bienal do
Livro de SP
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