São Paulo, sábado, 04 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"MODERNIDADE"

Deslumbre do espetáculo sufoca a denúncia da fama

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Modernidade" não merece ser tratado com condescendência. Tem um objetivo sério e urgente: a denúncia da fama enquanto sonho de consumo, na contramão de uma histeria que se torna onipresente na televisão. Tem recursos técnicos de multimídia avançados e precisos o bastante para combater o mal com seus próprios meios. Tem um elenco entusiasmado e unido que, revelado por "Cazas de Cazuza", obteve o apoio não só de João Araújo, pai de Cazuza, mas o prestígio da mídia, inclusive daquela que quer criticar.
E é aí que a cobra morde o rabo, para retomar a metáfora-design da montagem. Lulo, o protagonista da trama, que declara ser autobiográfica, foi descoberto ao encarnar Cazuza em uma montagem despretensiosa e competente, e criou fama de um grande ator-performer-cantor que despontava. Seu diretor, Rodrigo Pitta, chegou a criar um "SPA de performance" para desenvolver sua criatura em canto, dança e interpretação, dividindo-a com as exigências de mídia impostas pela modernidade: ponta em novela, participação em "reality show"...
A ascensão fulminante de Lulo encorajou seus parceiros a desautorizar modelos consagrados e denunciar a indústria da fama por dentro da barriga da besta. Realizaram um média-metragem em película, com uma trama caricatural e bem-humorada como uma HQ. Nela, em meio a celebridades convidadas que não se constrangeram em satirizar a própria sede pela fama, Rodrigo surge como um doutor Frankenstein, perdendo o controle de um mutante programado para o sucesso.
Rodrigo, um pioneiro da "Broadway paulista", já sonhava em superar seu modelo americano. Lulo, por sua vez, não teria um show, mas um evento que iria misturar cinema, teatro e musical. Não deu certo. Não é tão rápido inventar uma linguagem nova: para a Broadway, levou séculos, e os resultados, ainda assim, são questionáveis. O modelo novo de Pitta resultou em um show mediano com confusas intervenções teatrais; ou em imitação de "Tommy" com roteiro fraquíssimo, que mesmo a competência de Daniel Ribeiro e de Rosana Pereira não conseguem superar.
Lulo, no palco ou na tela, teve seu talento submerso pelo gigantismo da proposta e tem uma performance digna dos piores filmes de Stallone. O filme é uma longa e desnecessária introdução para quem foi ver Lulo cantar e no final rouba o clímax esvaziando o impacto que ainda o show poderia ter. O espetáculo só pega quando Lulo reproduz clichês gestuais e vocais em seus hits, ou quando os aeróbicos dançarinos, contagiados de narcisismo, reproduzem trechos de shows de Madonna e de Menudo. Mas não era justamente isso o que se queria evitar?
Infelizmente, apesar dos enormes recursos técnicos e humanos empregados, e do entusiasmo por uma boa causa, "Modernidade" acaba resultando em uma espécie de show de formatura de colégio de luxo, feito para a autocelebração entre amigos. A denúncia acabou sendo engolida pelo deslumbre, e a "modernidade" imposta pelo marketing segue fortalecida. É preciso mais profundidade para criticar o superficial.


Modernidade  
Concepção e direção: Rodrigo Pitta
Direção musical: Daniel Ribeiro
Com: André Pires, Suzana Franco, Thalita Valim e outros
Onde: Via Funchal (r. Funchal, 65, SP, tel. 0/xx/11/3846-2300)
Quando: hoje, amanhã e dias 11 e 12, às 21h30
Quanto: de R$ 20 a R$ 130




Texto Anterior: "A Ignorância": Milan Kundera desfaz a ilusão da aventura do grande retorno
Próximo Texto: Bienal do Livro - "Terra e Cinzas: Afegão remove pó de dor pré-Taleban
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.